Pular para o conteúdo principal
Escuta e reflexões sobre raciocínio desestruturado e amor

Elise Nogueira
Juiz de Fora



Visto que a historicidade é fator determinante da clínica filosófica, o que se faz diante de um partilhante que apresenta o tópico raciocínio desestruturado?

A primeira questão a ser respondida é: o que é estrutura? Deverá ser o que é lógico? Se olharmos pelas lentes da Lógica Formal, onde 2+2 é sempre igual a 4, podemos dizer que há uma estrutura. Mas o que acontece quando o partilhante nos diz que “laranja” + ”bola” é igual a “carro”?

Do professor Hélio Strassburger, que aborda a lógica da diferença, pude extrair uma pérola filosófica trazida por um de seus partilhantes da clínica psiquiátrica, cujo tópico raciocínio é tido como desestruturado. Segue-se então:

“Hélio, o mundo lá fora é pequeno demais para mim!”

O que é isso senão uma demonstração clara do que é a Lógica da singularidade ou Lógica Modal? Poderia uma pessoa que soma “laranja” com “bola” resultando “carro” caber neste mundo lógico e formal? Seguido a esse primeiro momento de reflexão, o próximo passo é saber como entender esta lógica ilógica.

Em suas pesquisas filosóficas, Will Goya diz ser necessária na clínica uma nova ética, a da alteridade e do amor, que em sua reflexão teria sido inaugurada pelo filósofo Lúcio Packter ao pensar a Filosofia Clínica.

Mas que amor é este Will? A clínica não seria possível por outras motivações? Sim. O amor aqui abordado não é o do tópico emoções, não é sentimento. Ele pode ser isso como também outras coisas. Este amor significa aquilo que interliga um ser ao outro.

Então o mais importante é a ligação, o contato, a interseção, que pode ser feita por meio do amor sentimento ou também por outras coisas. Ora, então como acontece isso na prática?

Um partilhante da clínica psiquiátrica sempre nos contava a mesma história. Contar histórias é tópico submodal seu, a Esteticidade, por meio do qual se fazia entender a ele mesmo. Basicamente ele contava assim:

“Eu estava na roça, peguei um carro por uma estrada cheia de curvas. O carro derrapou e caiu em um lago. Aí eu afundei e fiquei lá no fundo, morto.”

Ouvíamos sempre essa mesma história, com algumas variantes, sem tentar interpretá-la. Em certo momento da clínica, foi usado um procedimento de agendamento mínimo:

“Sim, e depois que você caiu no lago e ficou morto lá no fundo?”

Foi então que a “mágica” aconteceu. Ele nos olha nos olhos e responde mais ou menos assim:

“Aí vocês vieram, me tiraram de lá do fundo e me salvaram. Quando vocês vêm aqui, vocês alegram meu coração.”

Após o espanto clínico, pude fazer minhas considerações ditas teóricas. Analisando esta fala pela Lógica Formal temos:

Roça = roça

Estrada = estrada

Carro = carro

Lago = lago

Morte = morte

Assim teríamos o seguinte “diagnóstico”: se o partilhante está aqui, logo não está morto. Se está dizendo que está morto, logo está louco.

Fazendo a leitura da mesma fala pela Lógica Modal, temos:

Roça = lugar em que sua família mora e para onde vai ao sair do manicômio.

Estrada = neste caminho de retorno faz uso de drogas.

Carro = a família chama a ambulância que corre pelas curvas da estrada.

Lago = chega à clínica psiquiátrica e é novamente internado.

Morte = ao ser internado se fecha em seu mundo interno.

Percebe-se que existe sempre um significado lógico para cada elemento da sua história, embora não entendidos pela Lógica Formal. Aqui 2+2 não é igual a 4 simplesmente porque o 2 não é 2, o outro 2 também não é 2 e muito menos o 4 é 4.

Qual o segredo para se ler nas entrelinhas desta lógica singular? Geralmente, por não se fazer entender, estes seres singulares são lançados no “lago profundo”. Ter a expressividade tolhida pode significar a morte do ser, a solidão ontológica trazida pelo professor e psicólogo José Maurício. Então podemos entender o que o partilhante quer dizer ao falar que o mundo lá fora é pequeno demais para ele.

A Lógica Modal não tem fôrma e não cabe dentro da Lógica Formal. Sua forma é única e dada por aquele que a criou. Como a estrutura de pensamento de cada um é plástica, esta forma também pode mudar a qualquer momento. Além disso, somente quem a constrói sabe o seu significado.

Para entender esta lógica singular é preciso abandonar os livros e as teorias da ciência normal. Temos que aguçar a percepção utilizando os sentidos. Temos que tomar a mesma cor do Outro, como faz o camaleão, e tangenciar sua singularidade sem interferências até que ela se abra e permita que haja a interação entre as duas estruturas de pensamento.

O Outro, tido como louco, é um livro vivo e mágico que se abre por sua própria conta. É um livro onde as letras são invisíveis e falam por si mesmas. Não podemos abri-lo nem lê-lo por nossa vontade, pois sua história só acontece quando ele confia e se abre.

Então é preciso que este Outro diferente não se sinta ameaçado por críticas, rótulos, segregações, entre outras coisas, para que aos poucos ele saia do fundo do lago e permita que se entre em seu mundo. Quando isso acontece, é como se pudéssemos caminhar sobre as águas. É um momento mágico, o momento da interseção.

Uma vez ouvi dizer que fazer sexo não é somente fazer uso dos órgãos sexuais. Tudo que nos penetra por qualquer órgão sensorial, nos fecunda, cria algo novo em nós. Invadir a estrutura de pensamento de um partilhante com intervenções grosseiras, com nossos conceitos, preconceitos e cientificismo pode ser comparado a um estupro.

Na clínica filosófica, a fórmula para interagir com outra pessoa chama-se recíproca de inversão e exige escuta, abertura, respeito, calma, paciência, compreensão, alteridade, amor, isso e todas as outras coisas que possam ajudar ao outro a fazer amor consigo mesmo, a se fecundar, a se gestar e a se parir, se ele assim o quiser fazer.

Comentários

Visitas