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título - Filosofia Clínica e Existencialismo

Mariana Flores
Rio de Janeiro

Quando Heidegger diz que ao existirmos somos obrigados a erguer uma essência, deixa implícita a idéia de que quando nos deparamos com a existência, - a minha, a tua, a do mundo, a das coisas... - somos levados, por nós mesmos, pela própria consciência, a buscar sentido para o simples fato de existirmos. Se somos lançados num mundo ainda e para sempre “estranho”, estamos naturalmente passíveis de erguermos uma estrutura de pensamento, que não é mais que um esboço daquilo que somos – ou estamos sendo... Nós simplesmente existimos, nos debruçamos sobre nós mesmos, mergulhamos, conscientes, naquilo que chamamos existência e podemos, assim, assumir caminhos, buscas e sentidos para sermos.

A consciência é uma episteme. Ter consciência é saber. Sabemos que existimos porque somos, necessariamente, seres conscientes; e através desta consciência sabemos que a existência por si só representa um problema, cuja origem e razão nós ignoramos. Sabemos nada sobre ele; apenas que ele existe, e assim é. Na ausência de uma Verdade universal e absoluta que nos dê respostas positivistas sobre aquilo que nos parece tão obscuro, é circundando o que nos falta que possibilitamos a busca. Seja ela qual for.

É no âmbito do infinito que opera a Filosofia Clínica. Dar ao ser a liberdade para seu desdobrar-se, oferecer ao indivíduo um pequeno rabisco de suas infinitas possibilidades de ser e revelação, esta é, sem dúvida, a grande contribuição do novo paradigma terapêutico, que em muito nos têm enriquecido, já apenas pela tentativa de resguardar a essência, a pureza e a originalidade do ser, e respeitando em cada berço uma singularidade. Clínica e Filosofia dançam a melodia das possibilidades...Juntas, elas tornam possível a delícia e a beleza de um ballet...

O existencialismo heideggeriano e a estrutura de pensamento

Heidegger se afasta da fenomenologia de seu mestre Husserl e se debruça sobre a ontologia, como uma crítica à tradição filosófica – a metafísica ocidental, iniciada em Platão – e uma tentativa de uma nova perspectiva da filosofia, que se caracteriza pelo resgate da ontologia como a busca pelo essencial , pelo fundamental e pelo mais originário. A questão do Ser obtém inovador olhar quando Heidegger refuta a objetificação do ser, tal como acontece nas perspectivas aristotélica, que acabou por enredar ser e ente, subdividindo-o em substância e acidente, e moderna, cuja tendência direcionava-se sempre para uma classificação e categorização do ser. A principal questão, agora, tal como ele diz no texto de abertura de Ser e Tempo, é quanto ao sentido do ser.

A tradição filosófica caracteriza duas tipologias: ser e ente; entretanto, a perspectiva heideggeriana traz à tona a questão do ser do ente. Isto é, em todo ente há um ser; ou ainda, ser e ente são caminham juntos, inseparavelmente. O problema aí se caracteriza pela seguinte questão: Qual é o ser do ente?

Se nos concentrarmos na idéia de ente, perceberemos que há uma dualidade conceitual. Toda a idéia do ser leva consigo a idéia do não-ser; a verdade e a não-verdade. As coisas são e também não são. Toda afirmação traz consigo a idéia da sua negação.

A preocupação de Heidegger é a de desvelar o sentido do ser enquanto revelação e manifestação, tal como ele se mostra, e para isso seria necessária uma análise ontológica e hermenêutica, ou seja, de compreensão e interpretativa do sentido do ser. Portanto, caberia o seguinte questionamento: que é o ser que somos?

O homem é o único ser que busca a essência de seu ser; é ele quem está presente no mundo, e é ele também que estabelece uma relação epistemológica consigo próprio e com o mundo que o cerca. Está paradoxalmente presente e ausente; ele é, dentro da perspectiva heideggeriana, o ser-aí; é Dasein; é presença.

Partindo agora desta idéia de ser, como pre-sença, não há referencial mais fundamental para o humano que o tempo; ser presente é ser agora. E a idéia do presente, do agora, está diretamente relacionada às idéias de passado e futuro. A idéia do ser-aí, do ser presente, não teria sentido se o homem não tivesse como principal referência o tempo em que vive, desde de que se viu consciente de si, de sua existência e a das coisas. É, portanto, a temporalidade a principal estrutura do homem.

Além disso, a idéia da pré-sença traz consigo, inerente em seu ser uma idéia de futuro, de possibilidade, de vir-a-ser...Ou seja, o homem é o ser que, estando aí, já lançado numa existência, localizado num espaço que é o próprio mundo, guiando-se pelo tempo, é também um projeto, e como projeto, está repleto de possibilidades de ser e lançado numa estrutura de movimento permanente, que se chama tempo.

Sob a perspectiva da Filosofia Clínica, sugiro uma interpretação que pode nos ser útil para uma tentativa de compreensão da importância desta estrutura fundamental a que Heiddegger chama temporalidade, sem a qual o homem não seria capaz de erguer uma estrutura de pensamento representativa de tudo aquilo que compõe o seu ser na realidade em que vive, ou seja, no mundo.

A partir de um conjunto de lembranças e vivências, guardadas na reminiscência, representativas do significado de uma história de vida individual e singular – a historicidade-, pode-se esboçar o que chamamos de estrutura de pensamento. Esta estrutura de pensamento, por sua vez, é a base de todo um ideário que o homem adquire ao longo de sua existência, desdobrando-se em inúmeras partes e originando uma série de outras particularidades que compõem todo o ser. São as nossas vivências que vão despertar em nós pré-juízos, valores, buscas, impressões, paixões, papéis existenciais, enfim, uma infinidade de especialidades componentes para a formação, ainda inacabada, de nossa estrutura de pensamento, que no fundo, não representa mais do que aquilo que somos....E porque somos o que estamos sendo - não somos almas imóveis, sequer somos uma Verdade, mas várias - estamos constantemente à mercê do mar que é a existência.

Portanto, cada ser-no-mundo, cada um de nós navega no mar que é o seu próprio...Erguemos uma estrutura de pensamento que flutua numa aparente superfície. A cada mergulho descobrimos a imensurabilidade do profundo, e que linguagem e filosofia não são ainda capazes de abarcar a densidade da realidade tal como é para nós e em nós. Porém, o que nos dá a condição necessária para um movimento interno, grande possibilitador da vida, é a eterna inépcia de conhecimento do todo que somos; é o espaço vazio, esta parte dentro de nós que nos falta e que se chama o nada. É a busca.

A procura pelo sentido, a busca por tornar o não-ser um ser, a pura tentativa de conhecermos o desconhecido, de tornar afirmação o que se mostra negação, é esta dialética que nos move, nos leva a cada movimento e manifestação, nos faz alteridade e nos propulsiona para além...

Há uma existência que precede qualquer movimento. Embora não a tenhamos escolhido, decidimos dar continuidade. Liberdade é procedência natural, é criação e construção humanas. Como seres livres, inauguramos uma essência e elegemos uma vida.



"…Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos.) Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida-real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar."

Fernando Pessoa Carta a Casais Monteiro (13-1-1935)



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