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Ernest Cassirer e a Filosofia Clínica

Prof. Dr. Peter Büttner
Universidade Federal do Mato Grosso
Associação de Filosofia Clínica do Mato Grosso
Cuiabá/MT



ERNEST CASSIRER E A FILOSOFIA CLÍNICA

1- Quem é Ernest Cassirer?

2- Algumas características da Filosofia de Cassirer

3- Afinidades da Obra de Cassirer com a Filosofia Clínica

1- QUEM É ERNEST CASSIRER ?

É muito estranho o fato que a Filosofia de Ernest Cassirer é tão pouco conhecida e estudada no Brasil. Talvez seja justamente sua excelência, sua qualidade inerente e sua exclusividade que a condenam à relativa ineficácia e ao desconhecimento. Esta exclusividade consiste na abertura de Cassirer para as mais diversas evoluções do pensamento do passado e da atualidade, seja no campo da cultura, seja na área das ciências, interpretando-o em confronto com a filosofia.

Cassirer nasceu em 1874 na cidade alemã de Breslau, hoje pertencente à Polônia, (sendo chamada de Wroclaw). Doutorou-se em 1906 e foi professor de Filosofia na Universidade de Hamburgo de 1919 a 1933. Com os filósofos Cohen e Natorp se tornou um dos mais importantes pensadores da Escola de Marburg, a qual superou, enriquecendo com sentido histórico e cultural a maneira formal e logicista da visão de mundo.

Por ser Judeu, tinha de emigrar da Alemanha Nazista em 1933. Ficando algum tempo na Inglaterra (Oxfort) e na Suécia (Göteborg) e estabelecendo-se nos Estados Unidos (Harvard e Yale), onde morreu em 1945 na cidade de Princeton.

Nos Estados Unidos foi instigado a traduzir suas obras para o Inglês, mas reconhecendo a insuficiência de tempo, resumiu o principal de suas teorias, enriquecidas, porem, pela evolução de seu pensamento, em sua obra Essay on Man, que foi editada no Brasil com o mesmo título Ensaio sobre o Homem pela Martins Fontes e com o título Antropologia Filosófica pela Mestre Jô.

Mais do que por dados pessoais da vida de Cassirer, quero apresentá-lo aqui pelo seu pensamento filosófico e suas iniciativas inovadoras.

Antropologia Filosófica, para Cassirer, não é apenas uma disciplina de currículo escolar, mas é uma filosofia da consciência e da busca de significados, tendo em conta que a consciência e a busca de significados já sempre e em todos os casos se manifestam em determinadas formas concretas da vivência humana. Neste contexto sua Antropologia é ao mesmo tempo Filosofia da Cultura com o objetivo de orientação dos seres humanos, fazendo jus à posterior afirmação de Richard Rorty em seu livro O Espelho da Natureza, que o principal que hoje em dia precisamos em termos de filosofia é uma Filosofia da Cultura.

Considerando a filosofia de Cassirer como Filosofia da Cultura, não se pode entender este termo como uma filosofia entre outras, pois, ela é um empenho do pensar que abarca todas as competências humanas da compreensão do mundo. Ela é uma meta-orientação, uma orientação sobre a orientação. Toda filosofia de Cassirer tem como principal objetivo a orientação humana, alertando, não obstante, que nenhuma visão do ser humano pode ser rígida, limitada e definitivamente deter-minada.

O próprio Cassirer, que muitas vezes se manifestou criticamente contra a Filosofia da Vida do século XX, proclamou um tipo peculiar de filosofia da vida, pelo fato de partir da vida humana como vida da cultura, sem deixar de lado a profundidade epistemológica e o contexto histórico. Esta vida cultural, porém, já está sempre sob o princípio de formação simbólica e não deixa nenhuma possibilidade de voltar ao estado pré-racional ou, como é chamado também, puro e primitivo (original).

Cassirer trata principalmente mito e religião, linguagem e arte, ciência e técnica como formas simbólicas. Importante é entender, que os humanos, construindo qualquer conhecimento, criam também forçosamente um símbolo representativo de acordo com a forma simbólica (mito, arte, ciência etc.) em que situam seu pensa-mento. Existem recíprocas relações funcionais entre estas formas simbólicas. Não podem ser tratados, porém, no presente contexto.

O que nos pode preocupar é o conceito de verdade. Não haveria perigo de ocorrer sua relativização na passagem de uma forma simbólica à outra? Cassirer reconheceu este problema e o procura solucionar assim: a reivindicação da verdade, que aparece em determinado lugar da formação simbólica, deve ter por base a total inter-relação estrutural da formação simbólica. Isto supõe um posicionamento que se toma no processo da formação simbólica, sob cujo aspecto o conceito de verdade pode ser formulado e trabalhado. Às vezes parece que Cassirer vê este posiciona-mento na ciência do jeito como ele a trata no 3° volume da Filosofia das Formas Simbólicas. Mais provável, e mais justificável pelos textos, é que ele atribui esta tarefa à filosofia.

Mas, que tipo de filosofia Cassirer tem em mente? Evidentemente esta filosofia é para ele uma ciência racional de reflexão que se serve instrumentalmente das mais diversas ciências particulares, sem deixar-se estabelecer definitivamente como disciplina. Momentos éticos têm neste conceito de filosofia um papel decisivo. No 2° ponto veremos mais detalhes desta filosofia que, sem dúvida, permite caminhos diferenciados para sua compreensão.

Em 1988, no Congresso sobre Cassirer na Universidade (10) de Paris, com a presença dos mais renomeados filósofos franceses e de outras partes da Europa, Cassirer foi unanimemente declarado o maior historiador da Filosofia no século XX.

Foi realçado que não se limitou, contudo, apenas à História da Filosofia:

· A Filosofia Transcendental recebe com ele uma forma nova: o questionamento não se concentra mais apenas no conhecimento científico-filosófico, mas também no campo muito mais amplo da compreensão de significados.

· Cassirer tenta uma reconstrução da filosofia sistemática (que entende como visão unilateral do mundo) com meios novos (mas não anda o caminho radical de Wittgenstein e Heidegger).

· Cassirer situou a Filosofia de Kant no contexto histórico das Ciências do Espírito (Humanas) da Renascença até Hegel,

· confrontou a Filosofia com os mais recentes métodos e resultados das Ciências da Natureza e da Cultura.

· As mais novas e revolucionárias teorias, tais como a Teoria da Relatividade e a Mecânica Quântica encontram nele um interprete de profundidade.

· Com psicólogos e cientistas da arte estava em freqüente intercambio de idéias.

· As teorias da Fenomenologia Husserliana e da Hermenêutica Existencial de Heidegger, surgindo no século XX, sabia apreciar e julgar,

· tanto como a Filosofia do Circulo de Viena.

· Ao mesmo tempo, Cassirer sempre tentou tornar compreensível o significado original da filosofia na forma da antiga filosofia grega.

· Foi um dos primeiros no século XX que reconheceu a necessidade de uma Filosofia da Linguagem.

· Redescobriu a importância do pensar mítico para a orientação espiritual e intelectual do ser humano, sem desprezo da racionalidade.

· Criou com sua Filosofia das Formas Simbólicas uma nova teoria filosófica e uma nova compreensão do ser humano.

· Embora que negou a possibilidade de um sistema filosófico,

· Tanto como a durabilidade da Metafísica,

· Considera a perspectiva sistemática da filosofia indispensável, a fim de proporcionar significado e consistência ao problema da orientação e formação humanas, seja a das ciências, seja a da assim chamada vida natural.

· Seu teorema das formas simbólicas pode ser entendido diretamente como estrutura básica dessa orientação e formação, dado que considera energias espirituais concretas do ser humano que necessariamente se manifestam em formas mentais evidentes e dado que nem o espiritualmente formado pode existir separado de manifestações concretas (símbolos), nem a realidade concreta pode ser apreendida isolada do processo de assimilação mental e antes desta. [De certa maneira Cassirer antecipa com isso a Semiose de Morris (Foudations of the Theory of Signs, 1938, II, 2 e Signs, Language and Behavior, 1946, I, 2) onde fala em comportamento gestual (por sinais e signos)].

· Em sua visão: conhecimento é o processo contínuo de transformar a realidade circundante em símbolos que representam esta adequadamente.


2- ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DA FILOSOFIA DE CASSIRER

Filosofia das Formas Simbólicas não é apenas o título da obra em três volumes de Cassirer (1923/25/29). É, sobretudo, o nome de uma nova concepção da filosofia, a qual como escopo já se encontra nas obras anteriores de Cassirer, mas apenas desde 1923 alcança forma expressa.

O característico dessa nova concepção é que ela ao mesmo tempo é epistemológica e cultural-filosófica. Não nega o racional, mas este nasce e se desenvolve pelo potencial humano da construção de significados em todas as atividades humanas.

Portanto, a construção do mundo, no sentido filosófico, é considerada por Cassirer como simbólica, defendendo que apenas razão é um termo muito pouco adequado para abranger as formas da vida cultural do homem em toda sua riqueza e diversidade. Estas, principalmente, são mito e religião, linguagem e arte, ciência e história. Todas estas formas são simbólicas. Portanto, em lugar de definir o ser humano simplesmente como animal racional, Cassirer o caracteriza mais especifica-mente como animal simbólico, designando sua diferença peculiar e compreendendo adequadamente o caminho aberto ao homem: a cultura e a civilização.

Cassirer vê, então, as formas simbólicas como estradas diferentes que condu-zem ao mesmo centro. “Todas as obras humanas surgem em particulares condições históricas, culturais e sociológicas. Mas jamais poderíamos compreender estas condições especiais se não fôssemos capazes de apreender os princípios estruturais gerais que se encontram na base dessas obras, pois, o problema do sentido precede o problema do desenvolvimento histórico.” (Antrop., 1977, 117)

Forma simbólica é toda energia mental pela qual um significado espiritual é incorporado a um signo sensível. (WW, 175) Quanto mais uma forma simbólica em sua especificidade permite a compreensão do mundo, tanto mais plena ela é. Uma teoria da compreensão de significados deve preceder a teoria do conhecimento.

No entanto, “Não podemos querer medir a profundidade de um ramo especial da cultura humana sem a precedência de uma análise descritiva. A visão estrutural da cultura deve preceder à meramente histórica.” (Antrop., 1977, 118) Para Cassirer, esta análise descritiva exige categorias fundamentais da descrição, específicas para cada forma simbólica da cultura, que podem ser encontradas estudando e analisando os diferentes modos e possibilidades de cada forma simbólica.

Cassirer, não obstante, defende que a filosofia não pode contentar-se em analisar apenas as formas individuais da cultura humana. Ela busca um todo organizado, uma visão sintética universal e interrelacionada, que inclui todas as formas individuais que, contudo, se apresentam muitas vezes conflitantes. O pensamento científico contradiz e suprime o pensamento mítico. A religião se vê na necessidade de defender a pureza do próprio ideal contra as fantasias extravagantes do mito ou da arte e, assim, a unidade e harmonia da cultura parecem constantemente frustradas pelo curso real dos acontecimentos.

Cassirer insiste na distensão de nossa visão para diversas direções da atividade humana, afirmando que “A cultura humana, indubitavelmente, está dividida em várias atividades, que seguem linhas diferentes e perseguem diferentes objetivos.” (Antrop., 1977, 119)

Para Cassirer todas as formas simbólicas buscam “categorias” definidas, pelas quais os fenômenos da religião, da arte, da linguagem serão trazidos a uma ordem sistemática. Sem esta síntese prévia, realizada pelas próprias ciências, a filosofia não teria ponto de partida e nem poderia parar aqui.

Uma síntese filosófica, contudo, não significa um denominador comum ou uma unidade de efeitos, mas uma unidade de ação; não uma unidade de produtos, mas uma unidade de processo criador em que todas as formas cooperam para um fim comum e demonstram um caráter universal e, sobretudo, a unidade de uma função geral, pela qual todas estas criações se demonstram unidas.

Como se pode entender esta função geral? Para Cassirer esta função geral é a função base do ser humano de criar sinais, símbolos e significados para tudo com que ele se defronta em sua situação circunstancial a fim de assimilá-lo para seu universo pessoal, para construir seu mundo significativo.

O significado de alguma coisa, de um fenômeno, fato ou comportamento, porém, não é uma coisa física e visível, mas uma construção mental que, para ser expressa e comunicada, precisa de símbolos. Sem estes os humanos não têm meio para determinar, expressar e comunicar os conhecimentos, princípios estruturais, valores e sentidos que estão construindo com base em suas experiências, pensa-mentos e sentimentos.

E mais: A verdade das coisas não reside numa descrição teórica ou numa explanação das coisas; consiste antes na “visão simpática” com relacionamentos e afinidades das coisas e fenômenos. Os pontos de vista das formas simbólicas podem-se contrastar, mas sem conflito ou contradição, pois se movem em planos inteira-mente diferentes. A interpretação conceitual da ciência, p. ex., não impossibilita a interpretação da arte. Cada qual tem sua perspectiva própria e, por assim dizer, seu próprio ângulo de refração.

Cassirer recorre à psicologia da percepção sensorial ensinando-nos que, sem o uso de ambos os olhos, sem uma visão binocular, não haveria consciência da terceira dimensão do espaço. Assim, diz ele, a profundidade da experiência humana depende de sermos capazes de variar nossos modos de ver, de alterar nossas visões da realidade. De acordo com o nosso interesse pelas razões teóricas ou pelos efeitos práticos das coisas, pensamos nelas como causas ou como meios. Além do mais, cada forma simbólica tem sua própria modalidade de construir o mundo. A arte, p. ex., se caracteriza por visualizar e não apenas por conceituar ou utilizar as coisas, dando-nos uma imagem mais rica, mais vivida e colorida da realidade e uma visão mais profunda em sua estrutura formal.

Cassirer chega à conclusão: dado que é característico da natureza humana não se limitar a uma única maneira específica de abordar a realidade, mas poder escolher seu ponto de vista e, assim, passar de um aspecto das coisas para outro, também as categorias são mutáveis e são diferentes nas diversas formas simbólicas. Considera, também, a filosofia sistemática muito unilateral para uma visão adequada do mundo, defendendo que um realismo estreito demais não atinge o sentido da realidade. A filosofia deve apreender o todo das formas simbólicas, de cuja consideração nasce o conceito de uma em si articulada realidade e, por força desta, sujeito e objeto, eu e mundo se distinguem e se confrontam em determinada forma, estabelecendo a cada indivíduo seu determinado lugar nesta totalidade.

3- AFINIDADES DA OBRA DE CASSIRER COM A FILOSOFIA CLÍNICA

Cassirer, evidentemente, não conhecia a Filosofia Clínica, mas, sem dúvida, muitas partes de seu pensamento demonstram afinidade com esta. Isto não vem por acaso.

Os filósofos Merleau-Ponty e Arão Gurwitsch realçaram muitas vezes a expressividade simbólica na obra de Cassirer. Ambos foram influenciados pela Psicologia da Forma ou Gestaltismo. Cassirer e Gurwitsch conheciam o Gestaltismo pelo seu principal representante, Kurt Goldstein, que era primo de Cassirer.

Interessante é que Gurwitsch e Cassirer acompanharam, nos anos XX, na clínica de Goldstein em Francfurto, o trabalho deste com portadores de afasia (afasia é o enfraquecimento ou perda quase total do poder de captação e por vezes de expressão de palavras como símbolos de pensamentos, em virtude de lesões em alguns centros cerebrais e não devido a defeito no mecanismo auditivo ou fonador).

Cassirer viu no trabalho de Goldstein uma ilustração e confirmação de sua própria concepção do papel constitutivo da função simbólica. O que Goldstein chamava de comportamento concreto corresponde à compreensão de significados em Cassirer e o que caracterizou como categorial à função da representação e significação. Cassirer chamou seu capitulo sobre a Patologia da Consciência Simbólica, orientado por Goldstein, uma comprovação negativa de sua teoria simbólica. Olhando o caminho inverso, podemos perguntar: a teoria simbólica seria, então, uma contribuição para a clínica da afasia e, de maneira mais geral, para a Filosofia Clínica?

Mais do que em suas publicações fica evidente em suas obras póstumas que Cassirer de fato partiu de uma doutrina gestáltica na qual homem, mundo e símbolo já sempre estão vistos como uma totalidade em inter-relação. Sobre isso se apóia sua teoria de busca de significado (mais do que a busca de conhecimento). Muitos interpretes de Cassirer não perceberam quão perto a Filosofia das Formas Simbólicas se aproximou àquilo que Cassirer chama de Filosofia da Vida. Para ele: A vida sobressai da esfera da existência apenas natural: ela se transforma e aperfeiçoa à forma da mente (PSF, I, 51) Filosofia da Vida, para Cassirer, é a viravolta da filosofia moderna rumo à vida imediatamente ativa (PSF, I, 48 s). Aspectos da Filosofia das Formas Simbólicas demonstram uma coincidência com a Filosofia da Vida, p. ex.: o princípio da compreensão expressiva, simbólica, como base de toda a compreensão do mundo e com esta a temática do mito como forma de vida pré-científica, e neste contexto a temática do corpo e, finalmente, o uso do próprio conceito de vida.

É importante compreender que, para Cassirer, as formas simbólicas nascem da vida concreta, mas, todavia a transcendem. O simbólico transcende a vida no sentido de um valor “transpessoal” (PSF, III, 472 s). Este transpessoal é essencial para a Filosofia de Vida de Cassirer, pois, a essência da personalidade, para ele, consiste na capacidade de viver em direção ao futuro e até mesmo para um tempo em que não estaremos vivos, tanto quanto de participar do passado em que não mais podemos viver. Ambas as dimensões de tempo são incluídos na personalidade e a constroem junto com a realidade presente.

A personalidade se fundamenta, portanto, sobre algo transpessoal: sobre a linguagem, sobre o simbólico. Cassirer recorre à idéia de Humboldt de que o homem possui uma individualidade singular com base em sua linguagem transpessoal, de que a linguagem lhe abre o passado e o futuro e que esta propriamente gera comunidade. Em Davos Cassirer definiu isto assim: Cada um fala a sua linguagem e é impensável que a linguagem de um seja transferida para a linguagem de outrem (KPM, 264 s). Ao contrário das mônadas de Leibniz, as quais refletem o mundo do seu lugar “sem janelas”, a nossa identidade se constrói apenas por meio da linguagem transpessoal e social. Esta visão básica da Filosofia das Formas Simbólicas tem um aspecto ético. A problemática da ética, portanto é, para Cassirer, uma questão da linguagem, pois, sem a capacidade de ter um ponto de vista sobre a própria vida, não poderíamos ponderar objetivamente nem decisões que se referem a outros, nem exigências éticas transindividuais e transnacionais.

Cassirer reflete em seu estudo “Axel Hägerström” (1939) sobre a problemática da formação da vontade e chega à exigência necessária da maior unidade da vontade em vista dos conflitos e de sua solução. Ele vê esta exigência ligada ao conceito dos direitos humanos e do conceito inerente do ser humano – na humanidade. A idéia dos direitos humanos só tem sentido, quando existe algo como “humanitas” (correspondente à paideia), algo que se realiza em todo ser humano. Este algo é para Cassirer o potencial humano que ele caracteriza com o conceito do animal simbólico capaz de construir significados, competência em virtude da qual o homem é homem, não pelos seus princípios individuais, mas pelos essenciais da espécie.

Vimos, então, que Cassirer defende que a pura cultura da razão não pode fundamentar o valor mais alto da humanidade. Necessitamos de mais outras potencialidades para sermos verdadeiramente humanos, inclusive para manter a racionalidade em seus limites.

Se colocarmos a felicidade como meta suprema das aspirações humanas, a cultura já está julgada. Mesmo assim, Cassirer justifica a cultura, dando-lhe uma outra escala de valores: o valor verdadeiro não está nos bens que o homem recebe da natureza, mas no seu próprio pensar e agir e naquilo que ele faz de si por meio deste pensar e agir. Isto significa que a meta da cultura não é a realização da felicidade na Terra, mas a realização da liberdade, da autonomia autêntica, a qual não significa o domínio técnico do homem sobre a natureza, mas o domínio moral sobre si mesmo. (Logik,104)

È possível realizar esta meta, questiona Cassirer, é possível que o ser humano pode encontrar na cultura e por meio dela o alcance da plenitude de sua natureza inteligível pelo desenvolvimento mais pleno possível de seu potencial, mesmo que não consiga a satisfação de todos os seus desejos? A resposta para Cassirer é a seguinte: Isto apenas será possível se ele ultrapassar o limite de sua individualida-de, se conseguir alargar seu próprio Eu ao todo da humanidade. Dado que nesta tentativa existe um momento que ameaça a espontaneidade, em lugar de exaltá-la e aumentá-la, o ser humano sente este seu limite dolorosamente. Doar-se pode ser como um parto doloroso que traz vida e felicidade. Para Cassirer o comunicar-se e doar-se exige certos processos em comum entre as pessoas, mas não uma mera igualdade de produtos e define: um sujeito não se torna cognoscível e compreensível por outro ficando igual a este, mas colocando-se em relação ativa com ele.

Cultura, portanto, para Cassirer não é um simples acontecer, mas um fazer de todo ser humano que sempre de novo deva começar e agir, embora que nunca tenha certeza de sua meta; o que construiu sempre está ameaçado de destruição. Ela está diretamente ligada à problematicidade humana da qual nenhum humano pode escapar. Cassirer vê uma solução otimista do problema apoiada sobre o princípio de toda a comunicação espiritual:

Não é a obra da criação cultural, em cuja existência se solidifica o processo criativo, a meta perseguida, mas o Tu, o outro sujeito, aquele que recebe a obra para relacioná-la a sua própria vida.

A obra da cultura é, assim, a ponte que leva de um pólo-Eu a outro pólo-Eu. O processo vital da cultura consiste, portanto, na inesgotável criação de símbolos, de mediações e pontos de passagem de um Eu ao outro, ao Tu.

Embora que nosso assunto é a afinidade da obra de Cassirer com a Filosofia Clínica, creio que alguns dos presentes gostariam ouvir também algo a respeito da afinidade com a Filosofia para Crianças. Vou resumir a minha visão ao máximo:

· A atitude e atividade do pensar crítico-criativo-cuidadoso,

· E com ela a construção razoável de um universo pessoal autônomo com que se pode viver feliz,

· A busca de significados, sentidos e conhecimentos relevantes,

· O encontro do Eu com o Tu.

E agora, qual a afinidade da obra de Cassirer com a Filosofia Clínica?

Apresentei aqui apenas uma pequena parte da enorme obra de Cassirer. São, no entanto, idéias nas quais eu vejo alguma afinidade com a Filosofia Clínica. Obedecendo à metodologia da Filosofia para Crianças deixo, contudo, uma determinação mais específica destas afinidades e eventuais contribuições para a reconstrução em comunidade de investigação ou, então, para uma reflexão individual, dado que nosso tempo disponível aqui não permite grandes investigações comunitárias e interativas.

Espero, não obstante, que a minha exposição foi suficientemente intrigante para servir como instigação a esta reflexão e a conseqüente reconstrução pessoal do exposto, tanto como para a busca de seu significado, sendo esta a única maneira de cada um de vocês torna-la seu próprio conhecimento cheio de valores e sentidos.

Bibliografia:

Cassirer, E. Antropologia Filosófica. São Paulo: Mestre Jô, 1978

Cassirer, E. Philosophie der symbolischen Formen. Darmstadt: WBG, 1977

Cassirer, E. Zur Logik der Kulturwissenschaften. Darmstadt: WBG, 1980

Braun, H-J. Holzhey, H. Orth, E. W. Über Ernst Cassirers Philosophie der symbolischen Formen. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1988

Büttner, P. Der Aufbau der Welt bei Ernst Cassirer – Inauguraldissertation zur Erlangung des Doktorgrades. Innsbruck: Leopold-Franzens-Universität, 1988

Parckter, L. Filosofia Clínica. www.filosofiaclínica.com.br

CD Filosofia Clínica – CD Oficial 2005

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