Pular para o conteúdo principal
Notas iniciais sobre as categorias e a terapêutica filosófica

Prof. MS. Rodrigo Rodrigues Alvim da Silva
Especialista em Filosofia Clínica
Coordenador da Filosofia na Católica em Juiz de Fora/JF


"Os estudos foram a minha salvação; devo agradecer à filosofia
se consegui me levantar da cama, se me curei: a ela devo a vida,
mesmo que esta seja a menor dívida que tenho com ela".
Sêneca


01. A fim de superar todas as pré-condições que incidiram-no em tantos enganos, René Descartes adotou a dúvida hiperbólica como atitude básica do filósofo. Mais do que isto, converteu-a, paradoxalmente, em pré-condição para a sua própria superação, ou melhor, em pré-condição para a certeza, para a construção da ciência calcada na evidência, por ele mesmo traduzida no preceito de “evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção” (destaques nossos). Noutros termos, Descartes adotou o preceito de nada incluir em seus juízos que não se apresentasse tão clara e distintamente a seu espírito, que não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida.2 Em contrapartida, nos estudos d’As formas elementares da vida religiosa, o autor d’As regras do método sociológico, Émile Durkheim, destacou que “a ciência é fragmentária, incompleta; avança muito lentamente e jamais está concluída; mas a vida não pode esperar” (destaque nosso).3 Se há, pois, para a ciência moderna, muita precipitação nas considerações religiosas, que assim nos conduzem tantas vezes a ilusões e a equívocos, tais concepções religiosas e suas práticas não deixam, por seu turno, de enfatizar a demasiada prevenção que vitima os procedimentos científicos e que assim nos abandona a muitos dos desafios que continuamente a vida nos impõe.Essa nossa condição “trágica”, calcada na própria ontológica “desproporção do homem”, como nos sublinhou Blaise Pascal, reforça a prevenção científica e a precipitação religiosa.4 Onde se encontra o desengano proferido pela ciência, terreno muito mais fértil se oferece à religião, bem como a outras instituições humanas, capazes de nos iludir da segurança que não somos e não temos e, por isso mesmo e assim paradoxalmente, da qual tanto necessitamos.

02. A filosofia se atenta tanto à ciência quanto à religião. Faz-se a si mesma para cada uma, criticando-as. Compromete-se.

* * *

03. Nas academias, hoje comumente insistimos na precisão com que a ciência intervém na natureza... Tal precisão, estendida ao homem, corresponde, contudo, à reclamação deste pela “frieza” e “aridez” com que é tratado pelo cientista: trata-o sem tempo como uma coisa – e coisa qualquer. A antropologia filosófica ratifica este protesto contra tal tendência à reificação da pessoa, à coisificação do sujeito, à objetivação do ser humano.

04. A insistência, no entanto, na compreensão do homem como pessoa é acontecimento historicamente recente: os antigos gregos a desconheciam, os cristãos medievais a sugeriram e os modernos a aprofundaram.

05. Neste sentido, fundamentalmente para os gregos antigos, o homem é alguma coisa dentre as demais coisas que aí estão. Particularmente, pois, as “categorias” das coisas propostas por Aristóteles deveriam incluir o humano. Toda diferença só se firmaria, de modo cabal, na contemporaneidade, quando se percebeu os desafios de se obter o conhecimento das coisas (ciências da natureza) e as dificuldades de se obter semelhante conhecimento sobre o homem (ciências do espírito). Não seria o homem um tabula rasa recipiente das categorias das coisas (proposição aristotélica), mas ele mesmo e antes de tudo estas categorias que se projetariam nas coisas, formando-as como se nos manifestam (proposição kantiana). Contudo, destaca-se que tais categorias de que se tratam (independentemente do seu vetor) são as mesmas. Parece-me que a proposição packteriana nos apresentaria as categorias humanas como absolutamente distintas das que definiriam as coisas, as coisas como que por elas mesmas [os tópicos da “estrutura de pensamento”, em primeira ordem (“categorias propriamente ditas), e os “submodos”, em segunda ordem (pseudo-“categorias”, pois apenas modos de categorias)].

06. Se assim é, afirmar que a proposta da “Filosofia Clínica não trabalha com tipologias, patologias ou terapias previamente estabelecidas”5 pode, por algo mais, não ser uma falsidade completa, mas até aqui seria, no mínimo, uma “meia-verdade”. Há uma prévia compreensão do homem na cosmovisão do filósofo clínico que, no entanto, tem configuração plástica co-determinante pela historicidade de cada homem. “Cada homem” é, certamente, uma singularidade, ou seja, um universo de um só exemplar, mas, não menos certo, “cada homem”, porque também homem, é aquele universo de um universo maior, de um universo que já nos permite recepcioná-lo como homem e não como diferente disso ou como qualquer coisa. Ou não se tem, sinceramente, a expectativa de nele ler algum dos tópicos (um só, que seja!) do que já se possui da “estrutura de pensamento”?

07. Não se encontrar permanentemente atento a isso e, pior, tentar ignorar esse inevitável podem fazer do Filósofo Clínico vítima ingênua do que mais honestamente ele pretende evitar: o preconceito que distorce-nos o outro como verdadeiramente outro. Em nenhum encontro permanece o “eu” puro ou o “outro” puro; do contrário, não houve encontro, não houve “partilhantes”. Pretender a historicidade “bruta” do outro é incidir, por outra porta, na premissa do mau-positivismo de que nenhum sujeito epistêmico (aqui, no caso, o terapeuta profissional) pode se deixar envolver pelo seu objeto (ou melhor, pelo seu “paciente”). Pretender que a historicidade “bruta” se explicite por si mesma ao sujeito epistêmico é incidir, por outra porta mais, na premissa mau-positivista de que pela simples observação tudo se explicita por si só. Caso sejamos então advertidos de que este “esforço” só acontece no início do processo terapêutico da Filosofia Clínica (e que mesmo aí se trata de um “esforço”, visto que tal historicidade “bruta” nunca se dá plenamente), então concluímos que tal processo em sua inteireza admite “categorias” a partir das quais o “trato filosófico” (e não outro) se dá.

* * *

08. Como o pensar e o dizer as coisas como elas são (lógica, gramática e ontologia) se nos revelam a partir de inegáveis classes ou “lugares comuns” para Aristóteles, “expectativamos” pela existência de cada coisa a partir dessas mesmas “categorias” e “tópicos”. Se aqui se observa uma circularidade, esta nunca se resolverá insuspeitamente, pois “Aristóteles deixou-nos uma tábua destas categorias, sem nos dizer [porém] como procedeu para a estabelecer”.6 Contudo, apesar de dominar entre os seus intérpretes uma tábua definitiva destas categorias (as dez que se encontram na parte homônima do Organon), pode-se interpretar, de outro modo, em virtude de diferentes listas apresentadas nos Tópicos e na Physis, que seu número seja indeterminado. Mais do que isto, pode-se, contra a posse de sua sistematização fixa, defender a redutibilidade de umas categorias a outras, em vista de uma sistematização mais dinâmica.

09. Também, na Filosofia Clínica, paira uma nebulosidade sobre a origem dos tópicos da “estrutura de pensamento” e dos “sub-modos” em vigor e, quanto ao seu número, são eles potencialmente abertos a acréscimos. E se o estatuto das categorias aristotélicas se disputa entre o semântico-gramatical, o lógico e o ontológico, seria pacificador atribuir um estatuto antropológico, estranho a Aristóteles, às categorias packterianas. Neste sentido, seria preciso aproximá-las de outro paradigma categorial, a saber, da estética e da analítica transcendentais de Kant, partes principais de sua antropologia.

10. Procurando justificar internamente a transição das formas tempo e espaço da “faculdade da sensibilidade” humana para as categorias ou conceitos da “faculdade do entendimento” humano e da relação mesmo entre estas categorias ou conceitos, Kant tudo reduz a “modos de tempo”, garantindo, assim, uma sistematização que talvez muito pouco importa à clínica filosófica, mas que não pode deixar de interessar às academias de filosofia. De qualquer modo, é exemplar o esforço de Kant para teoricamente nada deixar sem as “mediações” imprescindíveis à inteligibilidade e compreensão do que se vai apresentando. Do ponto de vista prático, somente tal esforço nos possibilita estarmos amplamente cientes do que estamos fazendo e assim responder por estes mesmo atos.

11. Enfim, se a terapêutica filosófica assim se adjetiva em virtude de sua filiação à tradição da filosofia, torna-se indiscutível que seus estudos devam se voltar não apenas a estas duas vertentes paradigmáticas do trato de e a partir de categorias, mas para tantos outros filósofos ainda, como Platão e os neoplatônicos, Boécio, Fichte, Hegel, Schopenhauer, Hermann Cohen, Renouvier, William James, Heinrich Meier, Sanders Peirce, o primeiro Husserl, dentre tantos outros.



Notas:

1 - Palavras introdutórias pronunciadas em “mesa redonda” no I Colóquio de Filosofia Clínica de Juiz de Fora , Minas Gerais, em 10 de novembro de 2007.

2 - DESCARTES, René. Discurso do método. Introdução de Gilles-Gaston Granger, prefácio e notas de Gérard Lebrun, tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 37. (Coleção Os pensadores: Descartes, v. I, p. 1-71).

3 - DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Autrália. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 509.

4 - PASCAL, Blaise. Pensamentos. Tradução de Sérgio Milliet. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988. p. 37-38. (Coleção Os pensadores: Pascal).

5 - Grifos meus. Conferir em folder de divulgação da Filosofia Clínica da AFIC-MG (Associação de Filosofia Clínica de Minas Gerais), segundo semestre de 2007.

6 - BRUN, Jean. Aristóteles. Tradução de Liz da Silva. Lisboa: Dom Quixote, 1986. p. 58. (Coleção mestres do passado, n. 11).

Comentários

Visitas