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Simbologia e intuição no processo terapêutico

Idalina Krause
Filósofa Clínica
Porto Alegre/RS


Sem marcar hora uma brisa leve me tocou a alma. Movimento intenso, beleza, luz durável de um instante, pérolas de imagens, delírios sutis, algo potente. Era a intuição novamente me sacudindo pelos ombros. (Idalina Krause)


Nas práticas de consultório tem me chamado a atenção o aparecimento de certos sinais simbólicos, conjunções de imagens, que podem se dar tanto em sonhos dos partilhantes como em suas vivências cotidianas. Esses acontecimentos são fenômenos que saltam, têm vida e grande significação, são muito importantes quando analisados dentro das circunstâncias de cada caso e com profundidade.

Quando falo em intuição, ela está relacionada à visão de Spinoza e Bergson. Segundo esses filósofos a intuição proporciona o conhecimento do mundo como um todo concreto inter-relacionado.

Trago dois exemplos de como isso pode ocorrer na prática.

Uma partilhante está tendo um envolvimento com um rapaz, se encontram esporadicamente. “Ficante” é o termo que utilizam atualmente. Só que, nesse “ficar”, há uma desconfiança da parte dela em função dos desaparecimentos súbitos de seu par, e a impossibilidade de contato por telefone, ou seja, ele se torna para ela uma incógnita. Entre escapadelas, sumiços que duram semanas ou meses, acontecem novos encontros, mas as dúvidas continuam no ar.

Dentro desse processo clínico este é apenas um dos pontos que chamam a atenção, há uma dissonância, digamos que um comportamento que faz pensar, principalmente no que tange às ações do rapaz. Há mais incertezas do que firmeza neste relacionamento, algo está camuflado. Isso incomoda a partilhante, ela sente que algo não “fecha”, as coisas não batem. Já havia pensado várias vezes, em colocar um ponto final na relação, devido ao mal-estar subjetivo que essa relação vinha causando.

Mas como a simbologia e a intuição entram nesta história? Num desses encontros esporádicos, quando ele resolve aparecer, se deslocaram para a casa de campo dele. Entre conversas e bate-papos que não dizem muito de sua intimidade, sempre meio-escondida, ocorre um fenômeno. O aparecimento de uma enorme aranha e uma revoada de louva-deuses do nada que invade a casa.

Como terapeuta observando todo o contexto, este fato me chama atenção, os canais intuitivos vibram. Para confirmar minhas suspeitas, faço uma pesquisa para verificar a simbologia destes seres da natureza.

Começando pelo louva-deus: símbolo da rebeldia, infidelidade, perito em camuflagem. Fica parado nas plantas, esperando sua presa como que rezando. Ficam imóveis por longos períodos para não serem, comidos por outros animais. O jeitinho de devoto é só fachada, por trás da aparência há um animal feroz. Patas dianteiras perfeitas para golpear, a tentativa de escapar desta armadilha é inútil.

Algumas fêmeas de louva-deus cortam a cabeça do macho no momento do acasalamento. Se estiverem zangadas devoram o parceiro em seguida. Os grandes olhos do louva-deus o permitem enxergar em todas as direções num ângulo de 180 graus. Desde que nascem caçam, se estiverem com muita fome são capazes de comer seus próprios filhotes que se encontrem ao redor.

Agora as aranhas: aranhas precisam trocar de pele periodicamente, durante o período de crescimento produzem seda, só algumas constroem teias para capturar animais de que se alimentam. Outras usam teias como casas para proteger seus ovos. Todas possuem veneno, mas, são pouco perigosas para os humanos. Alguns tipos de peçonha servem apenas para atordoar a vítima facilitando a tarefa de matá-la. O veneno em muitas simbologias ilustra o “mal” que palavras ferinas ou mentirosas podem causar.

Essa pesquisa - coincidência ou não – pode ser o retrato da relação estabelecida entre os dois em que tracei somente alguns detalhes. É como uma metáfora da natureza, rica em vice-conceitos simbólicos, retrata, se não literalmente, mas com um grau de aproximação muito grande a realidade vivida entre os dois.

Não foi surpresa que depois de termos analisado essa simbologia, novos fatos se configuraram mesclando características entre aranhas e louva-deus. O mistério sobre a vida dele foi desfeito de forma surpreendente. Confirmando que: “O jeitinho de devoto é só fachada, por trás da aparência há um animal feroz”. Essa análise conjunta foi o desfecho de um esquema resolutivo que já apontava para o fim da relação. Intuição, mais simbologia e a confirmação que o mundo é um todo concreto inter-relacionado como afirmavam Bergson e Spinoza.

Outro exemplo para ilustrar agora sobre sonhos, destacando novamente a simbologia, agora relacionada ao conto “A bela e a fera”. Lembrando de que esta partilhante a quem me refiro dá importância e grande significação aos sonhos, dados intuitivos, fabulações, literatura e artes em geral.

Essa partilhante tinha sonhos recorrentes de dois rapazes parecendo príncipes em luta pelo amor e a atenção dela que aparecia em um castelo medieval. Essas imagens vieram com uma riqueza de detalhes vívidos e com grande potencial de significado. Em seu histórico a busca é forte envolvendo axiologia, pré-juízos e emoções na busca de um parceiro “ideal” que mais se aproxime de seus anseios. Mas como chegamos á fábula da “A bela e a fera”?

Depois de vários meses de clínica, desfeito um relacionamento anterior, a partilhante revê ideais e conceitos, cria novos pensamento e ações. Esta partilhante após um tempo em que seguimos trabalhando, encontra a pessoa que considera o “amor da sua vida”. Ganha de presente uma leitura de seu mapa astral, e pelas configurações lá expostas aparece novamente à alusão “A bela e a fera”, entre as conjunções astrais.

Para mim já é um sinal de alerta, que me chega via intuição, duas vezes a “bela e a fera”! Fui pesquisar mais detalhes sobre esta fábula. Encontrei entre as leituras que fiz no livro “Repressão sexual”, de Marilena Chauí, as seguintes passagens sobre esta fábula: “A expressão, muito usada antigamente, “esperar pelo príncipe encantado” ou pela “princesa encantada” não queria dizer apenas a espera por alguém muito bom e belo, mas também a necessidade de aguardar os que estão enfeitiçados porque ainda não chegou a hora do desencantamento”.

Essa passagem reproduz quase que literalmente o momento em que a partilhante se encontrava em seu devir, a transição, o amadurecimento, o novo e “ideal” relacionamento. Possível saída da casa dos pais, afirmação profissional e o reconhecimento de sua própria mutação dentro do novo relacionamento amoroso.

Mais detalhes sobre esse conto segundo Chauí: Bela “retorna ao castelo da Fera, dedica-se a ela e, ao fazê-lo, quebra o encanto, surgindo o belo príncipe com quem viverá. O conto se desenvolve como processo de amadurecimento da heroína e de constituição da imagem masculina através de seus desejos”.

Mostrei o livro e as minhas anotações à partilhante, traçamos considerações, pontuamos fatos, evidenciamos vivências, elaboramos trajetos e a terapia foi belíssima. É bom lembrar que esse procedimento foi parte de uma série de planejamentos clínicos. A partilhante está de alta, concluiu seu curso, abriu novas perspectivas de trabalho e tem um relacionamento muito belo com o seu namorado com quem convive atualmente.

Estas práticas que utilizo, respeitam os dados intuitivos que me chegam, poderia ser uma forma de Informação dirigida simbólica, aproveitando a riqueza das simbologias, explorando significados.

Não custa salientar que não se usa essa prática por achá-la simplesmente interessante. É mais um desdobramento clínico que deve obrigatoriamente estar dentro do contexto do processo, e muito bem elaborado, dentro de um planejamento clínico. Utilizar esses recursos nos processos terapêuticos foi extremamente produtivo, satisfatório e, porque não dizer, educativo e culturalmente prazeroso. Agregamos novos valores, enriquecendo cada um dos encontros, fortalecendo interseções.

Recolher o que o partilhante trás, seus significados íntimos, cuidar destes símbolos, ouvir com atenção, ponderar, estudar, buscar mais informações. Estar atento às nossas intuições e se dedicar ao aperfeiçoamento deste espaço clínico tão rico e vasto de possibilidades também faz parte do nosso trabalho. A intuição, como lembra Bérgson, é uma visão que vive a realidade da duração. “Não se adquire facilmente a intuição; tão habituados estamos ao uso da inteligência que se torna necessária uma viragem íntima violenta, contrária a nossas inclinações naturais, para podermos exercitar a intuição, e só em momentos favoráveis e fugazes somos capazes de o fazer.” (BERGSON, 1968).

Viver o espaço clínico, com amor, paixão vivenciando esta duração fugaz proporciona uma qualificação inigualável. O exercício terapêutico potencializa quem já possui de forma latente o dado intuitivo. Com o tempo, ele se torna um instrumento fascinante dentro do processo que vibra de forma alegre na busca da compreensão da alma humana. Mas Spinoza sabiamente alerta em uma de suas citações famosas: “Tenho evitado cuidadosamente rir-me dos atos humanos, ou desprezá-los; o que tenho feito é tratar de compreendê-los”. Acredito também no dito popular: tudo vale à pena se a alma não é pequena. Intuição e simbologia são acessos mais diretos à vida íntima de cada partilhante, corpo e alma numa mesma vibração.



Referência bibliográfica:

BERGSON, Henri. A filosofia contemporânea ocidental. Trad. Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo: Herder, 1968.

____________. Matéria e memória. Trad. Paulo Neves. São Paulo. Martins Fontes, 1999.

CHAUÍ, Marilena. Repressão sexual. São Paulo. Editora Brasiliense, 1984.

RIZK, Hadi. Compreender Spinoza. Trad. Jaime A. Clasen. Petrópolis. Editora Vozes, 2006.

SPINOZA, Benedictus. Ética. Trad. Tomaz Tadeu. Autêntica Editora. Belo Horizonte, 2007.

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