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Universos paralelos

Luana Tavares
Filósofa Clínica
Niterói/RJ


Relato pela ida à Casa de Saúde Esperança, Juiz de Fora/MG.


Uma prévia preparação talvez fosse aconselhável.... mas não houve nenhuma. Na verdade, tentei não pensar muito a respeito enquanto a paisagem se transformava a minha volta. Apenas a sensação indefinida confirmava que estava a caminho de um momento tantas vezes insinuado.

Não sei se por conta do torpor ainda presente no coração em função de tantos acontecimentos nos últimos tempos, a mente e até o coração se recusava a qualquer tipo de empolgação. Foi uma alegria a viagem e o próprio encontro na rodoviária, a curiosidade pelos contornos de uma cidade há tanto tempo somente na lembrança e um inesperado almoço compartilhado. Mas ainda sentia meu ser um tanto ausente.

A expectativa foi aumentando na medida em que o ônibus em direção à Casa de Saúde Esperança dela se aproximava, tal como o “frio na barriga”. O que esperar? Quais seriam os partilhantes do dia? E o pessoal que conduzia a casa, qual seria a recepção?

Mais uma vez, tentei afastar os pensamentos e me concentrar na paisagem ao redor, aliás, muito gratificante, pois as montanhas que se desenhavam à frente lembravam-me o quão distante estava do meu habitat natural e a razão da minha presença ali. Apenas o calor se assemelhava e esta não foi uma grata surpresa.

A recepção na Casa de Saúde Esperança, entretanto, não poderia ter sido melhor. Como foram amáveis e naturais todas aquelas pessoas tão envolvidas com o seu trabalho e tão cientes do papel que representavam.

O carinho e a admiração para com o meu querido tutor também não deixavam dúvidas do quanto a Filosofia Clínica está sendo respeitada nesse inusitado local. Confesso que realmente relaxei nesse instante. Bem, pensei, o que quer que esteja para se configurar, o apoio de todos era irrestrito. Mas o grande momento ainda não acontecera e eu não sei se estava verdadeiramente preparada para o que me aguardava.

Apesar do calor, da sala impessoal, das condições nada ideais de acolhimento, do cansaço pela viagem e por certa ansiedade a cada entrada, a atmosfera era de afeto, como se um grande abraço (o mesmo com o qual o partilhante era recebido) se perpetuasse e invadisse a todos nós. Éramos sempre quatro na sala, pois uma outra filósofa clínica me acompanhou na observação dos trabalhos e sua presença foi muito amiga. Acho que me lembrava o quanto estávamos sendo cúmplices destes momentos tão íntimos e que não havia dúvidas de que estamos comprometidos com algo maior que nós mesmos.

Foi um verdadeiro desfile, com direito a tapete vermelho, de estruturas de pensamento que se apresentava como uma surpresa atrás da outra. Desde estruturas coerentes e raciocínios altamente estruturados a outras com termos quase ausentes; algumas expressividades pareciam prestes a explodir em uma esteticidade bruta cujas conseqüências só poderiam ser avaliadas posteriormente. Mas também pude presenciar demonstrações de uma interseção construída com carinho e pautada numa confiança extrema.

Emoções, deslocamentos longos e um festival de semioses, com a música, o desenho, a fala que acontecia através de afeto presente e direcionado, foram alguns destaques. Mas talvez o maior destaque dentre todos seja a constante busca em ser considerado “normal”, ou seja, sair do local, onde apesar de ser claramente observado por tantos com adequado, pelo bom tratamento, não representa o objetivo final.

A liberdade, esse conceito humano tão caro e que, às vezes, parece ser quase inerente à nossa espécie, pontuava boa parte das falas. Talvez muitos de nós ainda não compreendamos que a almejada liberdade pode estar em qualquer lugar, em qualquer momento, mesmo ali atrás dos portões abertos da Casa de Saúde Esperança.

As amarras são internas, e a busca por “estar em casa”, por “voltar ao meu lugar”, por “estar com a minha família” seja a mesma que realizamos aqui fora, a cada dia. Aqueles que estão em paz que se manifestem em nosso socorro, pois muitas vezes as posições físicas, tantas vezes alternadas durante as sessões, entre filósofo clínico e partilhante, não possam ser igualmente realizadas no papel de cuidadores.

Também nós, os que temos autorização para ir e vir, precisamos fortemente desses confrontos para nos dar conta do quanto somos humanos, do quanto somos tão frágeis a ponto de perceber que há um limiar muito estreito que nos separa desse universo, paralelo sim, mas presente e assustadoramente possível.

Acho que posso resumir a partir do que me foi dito da fala de uma outra aluna: “havia afirmado sair dali com a alma lavada”, de que não sei se a minha alma se sentiu assim, lavada, pois ainda precisava digerir tudo o que presenciara, mas certamente me senti redimida. Estava chocada, mas uma energia saltava pelos poros.

É fascinante perceber a estrutura dessas lógicas inusitadas e, ao mesmo tempo, dimensionar a vida tal como ela se apresenta: com suas infinitas diversidades ativas e seus universos paralelos, que coexistem com a nossa absurda normalidade.

A dúvida permanece: quem de nós deve ser confinado? Que poder é esse que nos permite isolar pessoas só porque suas realidades estão momentaneamente alteradas? Quantos de nós não nos alteramos a cada momento, no exercício mesmo de nosso papel existencial, e nos confrontamos com nossos pesadelos diários?

Mas há que se lembrar que é importante ser cuidado, que este talvez seja este o supremo exercício da humanidade, o de ajudarmos uns aos outros e, dessa forma, torna-se imperioso, para os que se habilitam e possuem alguma claridade, iluminar a eventual sombra de nossos contemporâneos partilhantes.

Obrigada pela experiência, pelo chamado, pelo crédito.

Espero que outros encontros aconteçam.

Essa caminhada é mais bonita com a sua mão amiga.

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