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A utilização de uma consciência para a alteridade em Filosofia Clínica

Marcelo Osório Costa
Filósofo Clínico
Belo Horizonte/MG

Para que algo se torne compreensível é necessário que se vá ao mundo existencial do outro, seja este quem for. Antes de iniciar como se utiliza a consciência para a alteridade, serão apresentados alguns pontos a serem observados e considerados para que o filósofo clínico possa fazer uma correta análise literal dos dados relatados pela pessoa. Diante da história de vida do partilhante, cabe ao terapeuta despir-se de algumas idéias arbitrárias. É se proteger das revoltas do mar, quando há possibilidade do navio estar à deriva do mar e do vento, sem direção alguma. O terapeuta também deve compreender que existem alguns pensamentos que revelam hábitos que podem ser imperceptíveis a ele. É necessário ao terapeuta, então, andar em direção contrária a essa limitação se quer uma leitura dos dados literalmente colhidos da história de vida do partilhante (pessoa que procura pelos serviços do filósofo clínico). O filósofo clínico[1], por sua vez, deve também orientar a sua intencionalidade para o partilhante e para as suas questões últimas. Gadamer propõe o seguinte: “(...) orientar sua vista ‘às coisas elas mesmas’” (GADAMER, 1997).

Muitos filósofos clínicos se vêem, no processo terapêutico, a quase todo instante suscetíveis aos desvios de suas próprias idéias, possivelmente por este motivo pode não ser possível aproximar de uma só vez a Estrutura de Pensamento[2] da pessoa que procura pelos seus serviços. Essa tarefa, ao que se percebe em clínica, poderá ser alcançada quando se tem a idéia de que a Estrutura de Pensamento é primeira, constante e última, simultaneamente. O filósofo clínico não é um herói que alcança a leitura dos dados literais da Estrutura de Pensamento total e instantaneamente, mas deve compreender que é um processo epistemológico constante. O que importa para o terapeuta é não perder de vista o Assunto Último do partilhante. Segundo Goya, Assunto Último é

(...) quando revela a(s) problemática(s) mais importante(s). Último aqui não tem sentido metafísico, essencial, único, como se não houvesse a possibilidade de outro assunto além. Significa o má ximo de profundidade na análise do problema até o momento. (GOYA, 2008).

Em busca da aproximação da Estrutura de Pensamento do partilhante, e ao manifestar o Assunto Imediato e/ou Último em clínica filosófica, através da historicidade da pessoa, o terapeuta começa a pressupor, ou seja, a dar uma perspectiva clínica do todo da vida da pessoa. Isto significa que no momento que o partilhante relata para o filósofo clínico o seu Assunto Imediato e/ou Último, o terapeuta começará a direcionar o processo clínico. Naturalmente, o sentido histórico e total no processo clínico-filosófico somente se manifestará ao escutar e analisar toda a história do partilhante, e esse sentido se faz a partir da identificação do Assunto Imediato e/ou Último.

Quando o filósofo clínico se dispõe a compreender a história de vida de uma pessoa aproximando-se da Estrutura de Pensamento desta, o terapeuta realiza um projetar. Para compreender aquilo que é relatado pelo partilhante é preciso uma elaboração de um projeto prévio. Este “projeto prévio”, denominado assim por Gadamer, em sua obra Verdade e Método, poderá ser compreendido, em Filosofia Clínica, como a Colheita Categorial, os Exames Categoriais, a montagem da Estrutura de Pensamento e a Autogenia, e a posterior Análise da Estrutura de Pensamento.

O conteúdo obtido através destes procedimentos em Filosofia Clínica deve ser constantemente revisado tendo como base aquilo que vai se manifestando fenomenologicamente no processo terapêutico, tendo como referência a identificação do Assunto Imediato e/ou Último para não comprometer a perspectiva terapêutica. Packter, em seu Caderno B, # 23, propõe que três critérios são necessários para eleger os tópicos, que são eles: Assunto Imediato; Dado Padrão; Dado Atualizado. Desta forma, podemos entender que revisar significa enfatizar a escuta e relacionar as partes relatadas, pelo partilhante, com a totalidade histórica da pessoa, tendo como referência os critérios apontados por Packter.

Na medida em que o filósofo clínico se depara com a história de vida do partilhante é necessário revisar constantemente o projeto prévio, possibilitando, assim, um novo projeto. Assim, relações, tempos, lugares, circunstâncias, emoções, buscas, etc., são possíveis aparecer no decorrer do processo clínico-filosófico, e isto atesta a plasticidade da Estrutura de Pensamento. Desta forma, outros projetos poderão, diante da historicidade da pessoa, ser colocados lado a lado para que se possibilite estabelecer uma unidade de compreensão histórica.

Quando se procura compreender a história de vida do partilhante, possivelmente o terapeuta ficará exposto a equívocos de opiniões prévias. Isto é corroborado quando o filósofo clínico se depara com o próprio relato histórico do partilhante em clínica, ou seja, os pré-juízos não se confirmam naquilo que a pessoa é, por exemplo, os seus significados e seus valores representados pelo partilhante. Desta forma, compreender a história de vida da pessoa se dá a partir da elaboração dos projetos corretos e adequados às coisas do partilhante, e não de outra pessoa. Não se deve esquecer que projetos são antecipações que, a partir disto, podem ser utilizadas como referenciais na aplicação de Submodos.

Como é possível alcançar, então, a compreensão da história de vida do partilhante? Isto se dá quando há uma escuta literal, por parte do filósofo clínico, daquilo que o partilhante relata; algumas intervenções que, em Filosofia Clínica, são chamadas de Agendamentos Mínimos; a utilização de Divisões Gerais e Específicas; os Enraizamentos; Autogenia; e, Análise da Estrutura de Pensamento. Nenhuma compreensão da historicidade da pessoa será possível sem a identificação e a perspectiva clínica em relação ao Assunto Imediato e/ou Último. Pode-se entender, de modo geral, que pode haver incompreensão do histórico de vida da pessoa quando o terapeuta não vai ao mundo existencial do partilhante.

Não é possível haver um direcionamento clínico se o terapeuta não acompanhar atentamente o relato e os dados de semiose que se manifestam através da Estrutura de Pensamento da pessoa. A pouca proximidade do filósofo clínico em relação à pessoa naquilo que ela é no ambiente que ela está, poderá trazer como conseqüência certa desestruturação no partilhante e não alcançar o objetivo da Filosofia Clínica que é a busca da pessoa. Gadamer contribui relatando que “O que se exige é simplesmente a abertura da opinião do outro (...)” (GADAMER, 1997).

Para alcançar a compreensão do outro é necessário que essas exigências sejam vistas como fundamentais e radicais. É claro que existem alguns procedimentos que se farão quando necessários como, por exemplo, os enraizamentos. Um possível equivoco ético, em Filosofia Clínica, pode ser, por exemplo, quando diante de qualquer relato da historicidade de uma pessoa introduzir, por parte do terapeuta, direta e acriticamente os seus próprios hábitos lingüísticos, de conteúdos, significações, representações, axiologias, modelos epistemológicos, etc. É reconhecido como tarefa do filósofo clínico, dentre outras, alcançar, por aproximação, a compreensão do relato histórico existencial da pessoa tendo como ponto de referência as representações de mundo do partilhante. Gadamer, portanto, adverte que:

(...) o que é dito por alguém, em conversação, por carta, em um livro ou seja como for, encontra-se, de princípio, sob a pressuposição de que o que é exposto é sua opinião e não a minha, da qual eu tenho que tomar conhecimento (...) (GADAMER, 1997).

Como, então, compreender a representação do partilhante identificando que existem diferenças entre a representação do terapeuta e do partilhante? Uma hipótese pode ser apresentada quando há um choque entre a forma de representar o mundo, por parte do filósofo clínico, com o relato da história de vida do partilhante e suas representações de mundo. Este choque poderá manifestar certa percepção de um possível ser-diverso do uso das linguagens e suas representações existenciais. Para Deleuze “Deste modo, o registro da diferença se faz na identidade de um conceito indeterminado” (DELEUZE,1988). O mundo existencial do partilhante com suas representações, significados, emoções, axiologias são compreendidas como singulares quando o filósofo clínico se vê e se identifica como outro diferente e diverso do partilhante.

De um modo geral, no processo terapêutico poderá ocorrer que algumas representações, entre filósofo clínico e a pessoa, sejam familiares, usuais e comuns em seus usos e significados, porém, em casos singulares, na representação do partilhante, é necessário o uso de enraizamentos para que se tornem compreensíveis determinados conceitos. Para que as representações, significações, etc., se tornem familiares Packter adverte que “A pessoa é a medida de tudo o que lhe está em relação, medida essa que somente ganha significado com a qualidade da Interseção” (PACKETR, Caderno B, # 27). Assim, a Interseção é um aspecto a ser observado, pois ela determina todo o processo clínico quando não se perde de vista o objetivo da Filosofia Clínica. Packter, no entanto, nos mostra que “Tudo em clínica é a resultante da qualidade da Interseção entre o filósofo e a pessoa” (PACKTER, Caderno A, #11).

O filósofo clínico, ao querer compreender a historicidade da pessoa, não pode entregar-se à casualidade de seus pré-juízos e representações e ignorar aquilo que a própria história de vida do partilhante está manifestando. Assim, o filósofo clínico que quer compreender o mundo existencial do partilhante deve, em princípio, estar disposto a deixar que a própria Estrutura de Pensamento da pessoa diga alguma coisa por si mesma. Por isto que uma consciência formada para a alteridade deve sempre se mostrar receptiva, desde o princípio, para a história de vida do partilhante. Essa receptividade do terapeuta não diz respeito a uma auto-neutralidade e nem um auto-anulamento em relação ao partilhante, mas se deve compreender a existência e aquilo que é meu e do outro na diversidade de representações de mundo.



Referências Bibliográficas:

DELEUZE,Gilles.Diferença e repetição.Rio de Janeiro:Graal,1988.

GADAMER,Hans-Georg.Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica.Petrópolis: Vozes,1997.

GOYA,Will.A Escuta e o silêncio: lições do diálogo na filosofia clínica.Goiânia.Ed.da UCG,2008.

PACKTER, Lúcio.Cadernos de Filosofia Clínica. In: caderno A.Porto Alegre:1995 e 1999.

______.Cadernos de Filosofia Clínica. In: caderno B. Porto Alegre:1995 e 1999.


[1] É inicialmente o estudante de filosofia disposto a compartilhar um caminho incerto com outras pessoas, a atuar filosoficamente em cada endereço desse caminho tal, pois é em cada endereço que sua identidade se modela. Partilhando um período da existência de outro ser, sob a responsabilidade que o nomeou filósofo, sua identidade reside em sua posição dentro da situação vivenciada (PACKTER, Caderno A, # 5).

[2] É o modo como a pessoa está existencialmente no ambiente. (PACKTER, Caderno A, # 16).

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