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Linguagem e singularidade

Mariana Flores
Filósofa Clínica
Rio de Janeiro/RJ


A noção de linguagem que Wittgenstein apresenta nas suas Investigações Filosóficas, cuja concepção é a de que o significado das palavras depende de seu uso na linguagem, em Filosofia Clínica se traduz como um dos princípios dos cuidados de que deve ter o filósofo clínico ao exercer-se como terapeuta e cuidador nas acolhidas existenciais a que se dispõe, e que, adversamente às técnicas tradicionais da psiquiatria ou das psicologias tradicionais - que não fazem senão hermenêutica sobre o discurso ou expressividade do indivíduo – permitirá guardar o sentido mais original da palavra no contexto discursivo do sujeito, ou seja, respeitando ou limitando-se a entendê-lo somente a partir e à medida de uma singularidade existencial que, sendo singularidade, permite-se acessar a todo um vocabulário muito próprio, recheado de significados singulares para cada termo da linguagem como semiose.

Aquilo a que chamou “jogos de linguagem” refere-se, segundo o próprio Wittgenstein, aos vários usos das palavras e ao conjunto da linguagem e das atividades com as quais estão ligadas.1 , sendo a própria linguagem a representação de uma forma de vida.
Este modo de conceber a linguagem como representação de uma forma de vida inspira e permite à Filosofia Clínica ressignificá-la como semiose, isto é, via de expressão, comunicação e abertura do indivíduo para o mundo: seu modo de ser e mostrar-se.

Uma terapia é também uma comunicação, um intercâmbio de mensagens, que permite tornar comum, através da linguagem, um espaço-instante de vivência. A filosofia enquanto clínica, ou enquanto cuidado, propõe que o ser terapeuta disponibilize-se a tratar, no sentido de cuidar, as questões e dores existenciais daquele que o procura para delas partilhar.

É um encontro de duas singularidades em dialética, na qual só haverá de fato dialética se houver antes a interseção que permita qualquer que seja a comunicação, seja ela verbal ou silenciosa. A linguagem através da qual o ser se expressa e comunica consigo mesmo e com o mundo será sempre singular e ninguém além daquele que a utiliza, ou seja, o próprio sujeito partilhante, poderá desvendar seus dados de semiose.

Sendo assim, partindo do princípio de que a linguagem é de cada um, unicamente, e singular ao próprio sujeito, a filosofia clínica ocupa-se por considerar como linguagem cada gesto semiótico presente no manifestar-se do indivíduo.
Então, em Filosofia clinica, não há que se adequar a linguagem semiótica do sujeito a um predeterminado padrão de comunicação; mas sua tarefa será a de investigar qual(is) linguagem(s) o partilhante utiliza para se expressar. Não há um ou dois tipos de linguagem, mas uma multiplicidade deles.

Linguagem é toda comunicação por sinais. As palavras, as letras, a própria fala (como sinal sonoro), e também as cores, a música, expressões artísticas, os símbolos, são todos sinais. Sinais de singularidades existenciais que se manifestam na imensidão de seus mundos quase sempre compartilhados.

E neste compartilhar de vivências, o partilhante desnuda uma estrutura de pensamento que é seu próprio ”estar sendo” no mundo, arriscando-se às transformações possíveis no decorrer de uma autogenia. Quiçá numa confusão de cores e sons, gestos e olhares, traduzem-se significados e sentidos muitas vezes não-ditos. A linguagem se diz também no silêncio proferido.

O filósofo clínico deve estar atento aos sinais mínimos de cada linguagem, cuidando de não esquecer que a linguagem por si própria sofre mutações, movimentando-se nas autogenias do sujeito. Wittgenstein nos lembra que nossa linguagem pode ser considerada como uma velha cidade: uma rede de ruelas e praças, casas novas e velhas, e casas construídas em diferentes épocas; e isto tudo cercado por uma quantidade de novos subúrbios com suas retas e regulares e com casas uniformes.

Assim, através de vice-conceitos, ele nos ajuda a entender que a linguagem, bem assim o próprio ser, sofre transformações, demolindo e reconstruindo-se no decorrer de uma existência a cada instante pronunciada.

Não há espaço, segundo o modo de pensar o sujeito em filosofia clínica, para determinações lingüísticas ou pré-conceitos acerca do que diz – ou cala – o partilhante. O discurso não tem valor senão contextualizado nas circunstâncias daquele que o profere, manifestando respectivos valores e sentidos.

Eis, no entanto, uma dificuldade: livrar a linguagem singular de cada um das amarras do senso comum, já que a ele fora dada a tarefa de ditar regras de uso e significações das palavras, normatizando “formas de falar”. Mas há uma pluralidade desses modos de dizer que quase sempre são nulificados. Pois, segundo o próprio Wittgenstein, o que nos confunde é a uniformidade da aparência das palavras, quando estas nos são ditas, ou quando com elas nos defrontamos na escrita e na imprensa. Pois seu emprego não nos é tão claro. E especialmente não o é quando filosofamos, justamente porque se há que se falar em natureza ou essência do exercício filosófico, este se traduzirá na busca pela Verdade.

Mas em clínica, a verdade sempre será subjetiva, e a linguagem própria de cada um servirá como sua guarda.

A abertura concedida ao sujeito pela filosofia clínica –sendo ele próprio um ser “em aberto’, que se transforma – e o respeito à verdade subjetiva de cada singularidade em existência não deixará espaço para a hermenêutica – a não ser a do próprio sujeito - que, interpretando, tende à distorção e desvio do sentido mais originário ( a verdade) da linguagem de cada um.

Daí que nenhuma forma de dizer, que poderá desdobrar-se em olhares, a linguagem do corpo, palavras, a linguagem verbal, cores e música, a linguagem artística, deverá ser ignorada: porque representar uma linguagem significa representar-se uma forma de vida.



1. WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas, pg. 16. Col. OS PENSADORES, vol. XLVI. 1ª. Edição, 1975. Abril Cultural.

2. Idem. Pg. 19.

3. O sentido de dialética aqui se refere ao movimento do construir, desconstruir, reconstruir presentes na atividade terapêutico-filosófica.

4. COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. Martins Fontes, 1ª. Edição, 2003.

5. WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas, pg.19, col. OS PENSADORES, 1ª. Edição, 1975.

6. Idem.

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