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Agna é menina

Gustavo Bertoche
Filósofo Clínico
Rio de Janeiro/RJ


Agna, portanto, é uma menina. Surpreende-se com o mundo - e com ela mesma. Haverá diferença entre o mundo que Agna vê e a própria Agna ? Não vê ela o mundo com seus olhos ? Agna tem dúvidas: não sabe se ela é um ser-no-mundo ou se o mundo é um ser-em-Agna. Existirá de fato ?

A leitora sabe a resposta. Agna é um ser-no-mundo, porque é uma invenção da pobre alma que escreveu este livro. A dúvida de Agna não tem sentido. Uma outra leitora, que sabes superficial como não és (te sei profunda), diria talvez ser Agna um não-ser - um fruto da imaginação de um autor louco. Não responda à outra leitora que sabes que um ser imaginado é um ser real, um ser mais real até do que o que é real, um ser que é real em sua própria e específica realidade - é um ser super-real, um ser surreal.

Sabes que a palavra surreal é a equivalente francesa de super-real, e sabes que o super-homem é exatamente o homem que vive na realidade mais real, a super-realidade, a surrealidade. Agna é super-humana. Tu poderias sê-la também, adorável leitora. Bastaria viveres na surrealidade - bastaria esquecer-te dos valores que tomaste emprestados, aliená-los, buscar a realidade e só a realidade; assim serias, como Agna, um ser completamente livre.

"Livre?" poderias perguntar-me. Pode ser livre alguém privado de sua vontade ? Não é Agna uma personagem ? Não podemos fazer dela marionete de nossas fantasias ? Não. Agna é quem utiliza-nos, é ela quem faz de nós um instrumento.

Agna existe, mas quer emergir - nós somos os pesos do escafandrista. Agna é o escafandrista. Somos criadores que dependem de nossa criatura; somos Deus, Agna é o homem. Se somos mais reais do que Deus, Agna é mais real do que nós - na mesma proporção.

Viste, leitora, o que é sentir-se Deus ? Agna é tão fruto teu quanto é meu. Enquanto lês, crias. Enquanto lês, escreves. Não sentes o prazer de escrever o sentimento de nossa criança ? Não amas a sensação de ter o poder de matar Agna, se quiseres ? Mas não matemo-la. Deixemos que ela mate alguém. Deixemo-la matar-nos.

Deixemo-la matar-nos. "Louco!", novamente pensarão. Sabes como eu, leitora, que há os que creem uma personagem jamais ser capaz de matar seu criador. Certamente, há criaturas mansas - mas elas são tão pestilentamente monótonas.

A monotonia, que devém da imagem dócil, é morna e mole. Não faz o convite à guerra, não é provocadora. São mais deliciosas e iluminadas as imagens rudes, hostis e autônomas - as imagens secas, mas repletas de sonhos, da liberdade.

E Agna não é monocórdia.

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