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Distorções*


Quando a conversa é leitura, não nos falta bibliografia para uma melhor compreensão do assunto. Alguns especialistas trabalham com a idéia de que um bom aproveitamento dos estudos, acontece na interseção de dois conhecimentos: lingüístico e as informações exteriores ao texto, ou seja: nossas vivências e convivências.

Os objetivos pelos quais buscamos um bom livro variam: informações, ampliar horizontes, compreender o mundo, comunicar-se e escrever melhor, relacionar-se com o outro. No entanto, existe um ponto em que a maioria dos estudantes concorda: a leitura deve ser algo prazeroso.

Sendo agradável, ela deverá nos tocar em algum momento. Com o espírito aberto às informações, a relação entre as idéias do autor e o leitor pode proporcionar verdadeiras revoluções na estrutura de pensamento de quem se desloca ao mundo de quem escreve. Ao lermos nos deparamos com vestígios de uma alma disfarçada em palavras.

Lembro duas obras que possibilitam dialogar com a estrutura das metamorfoses existenciais: “Filosofia Clínica - Poéticas da Singularidade e Filosofia Clínica - Diálogos com a lógica dos excessos” do escritor e filósofo clínico Hélio Strassburger.

Seus escritos podem ser direcionados aos estudos em terapia, a uma leitura informal sobre o tema ou apreciar a poesia presente em suas reflexões, análises e desconstruções. Suas vivências e conhecimento teórico, compartilhados numa prosa-poética permitem tais desvios.

Dois livros, muitas vezes, considerados de difícil acesso, ao primeiro olhar. Essa suposta dificuldade pode facilitar o caminho para as variadas possibilidades de leitura e releitura. As idéias movimentadas no texto, a linguagem utilizada e a construção de frases curtas são um convite ao diálogo.

Sendo uma obra aberta, permite ao leitor continuar refletindo a partir do ponto de vista caro a filosofia clínica: a singularidade. Visualizando seus textos temos a imagem de um arauto solene a convidar o leitor a um movimento inversivo, na esperança deste resgatar a sensibilidade perdida ao olhar o mundo, o outro e a si mesmo.

Com o desenrolar da leitura percebemos que o autor nos coloca como protagonistas. Ao falar de alguns, menciona cada um. De uma humanidade cujo trajeto existencial é a busca de seu próprio ser: os desdobramentos, as desconstruções e reconstruções. A armadilha conceitual resultante do consumismo criou um estado de competição ilógico e enraizado em nossa sociedade.

Gastamos nossa energia obedecendo aos apelos de consumo em detrimento da subjetividade.
Strassburger em Poéticas da Singularidade: “Pessoas normais fazem uma força enorme para sobreviver numa realidade que não conseguem modificar. (...) Investindo muito esforço e habilidade para afastar antigos sonhos de mudar o mundo e melhorar as coisas por aqui.”

A ilusão de fazer parte dessa estrutura destrói talentos que se manifestariam numa via marginal. O resultado dessas conquistas desconexas à estrutura de pensamento resulta, algumas vezes, em somatizações. O corpo pode ser o primeiro a rejeitar o distanciamento entre as buscas e a realidade vivida.

Esconder-se em papéis existenciais distantes de nossa essência pode ser considerado inteligente. Atitudes repetitivas ganham mais destaque que os gestos originais e criativos. O bem estar subjetivo, talvez se encontre nas realizações comprometidas com a estrutura de pensamento.

A singularidade poderia ser a fonte de inspiração de sua própria existência, e, sua manifestação, uma espécie de farol àqueles perdidos pelo caminho. Assim poetiza o autor: “A matéria-prima para existir melhor costuma ser encontrada nas próprias ruínas, sob os escombros das desconstruções. Etapas de um reconstruir efetivado a partir desse lugar com aparência de terra arrasada.”

Nesse sentido, os contratempos escondidos na historicidade devem ser vistos com carinho, acolhimento e respeito pela condição do outro. A presença de um cuidador filósofo clínico pode acessar o procedimento adequado a situação. Uma clínica proveitosa descrita desta maneira fará fluir anos de uma existência sem ritmo.

Outro ponto destacado em seus escritos diz respeito às lógicas da diferença. De uma linguagem incompreendida pelos rituais do mundo normal. Inversivos e sem ferramentas adequadas para os excessos das lógicas marginais acredita-se ser o afastamento de nosso convívio a decisão mais acertada em relação a algumas pessoas. Reduzindo a tipologias essa gente mal compreendida.
Ao recordar Lya Luft, o autor alimenta ânimos de seguir em frente:

“Apesar do medo
Escolho a ousadia.
Ao desconforto das algemas, prefiro
A dura liberdade.
Vôo com meu par de asas tortas,
Sem o tédio da comprovação.
Opto pela loucura, com um grão
De realidade:
Meu ímpeto explode o ponto,
Arqueia a linha, traça contornos
Para os romper.
Desculpem, mas devo dizer: Eu
Quero o delírio.”

O entorno dos princípios de verdade, ainda prestigia em demasia: a racionalidade, o equilíbrio, a sensatez, a estruturação de raciocínio os parâmetros adequados para definir se somos capazes de alguma interseção ou não.

Nossos excessos ainda são respeitados pelo fato de nossa linguagem ser compreendida pela maioria. A pluralidade subjetiva encontrada em cada um realiza-se em processos nem sempre lineares. Assim, esse fenômeno, ao se apresentar de forma estranha, pode vir a ser aceito, pelo fato de nem sempre surgir de desestruturações.

Quando insistimos em dedicar um tempo a mais às nossas loucuras criativas, por exemplo, a epistemologia normal logo nos chama a atenção: `está ficando louco ?`. Muitas vezes, o medo da não aceitação é maior e deixamos nossa possibilidade de ser original perdida, nalgum lugar do caminho.

Os encontros sociais para seguir o fluxo, podem ser comportamentos de uma maioria para atestar a sensatez das escolhas do grupo, para continuar sendo aceito e regido. A expressividade contraditória das lógicas da diferença, num mundo normal, antes de mais nada, consiste no aspecto de termos ou não uma linguagem aceita ou reconhecida.

*Ana Cristina da Conceição
Filósofa. Filósofa Clínica
Porto Alegre/RS

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