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*A estética dos intervalos


“A verdade que se abre na obra, nunca é atestável nem deduzível a partir do que até então havia. Pelo contrário, o que até então havia é que é refutado pela obra, na sua realidade exclusiva.”
Martin Heidegger


A fluência discursiva da ficção aprecia o lugar qualquer de todo lugar para justificar suas origens. Em algum ponto da interseção com a realidade empírica, sua atuação prolifera entremeios de uma zona incrível.

Nesse extraordinário idioma é possível localizar várias fontes – de saber –, devaneios de reinvenção. Contradição bem vinda a inaugurar pontos de vista, até então, cristalizados num passado sem sentido. A pressa em querer consertar desajustes pode manter tudo como está.

O codinome incomum dessas irregularidades criativas tenta descrever o território por onde a não-palavra se desloca, num processo a vislumbrar contornos invisíveis ao raciocínio das convenções.

A pessoa condenada a viver em intervalos existenciais, onde as crises se alternam, nem sempre consegue traduzir seus próprios rituais. Ao deixar acessível esse viés expressivo, mostra de um jeito único, a natureza imprevisível das lacunas impreenchíveis. O espectro institucional trabalha para convencer a pessoa em estado nascente a deixar de lado suas vontades.

Com o apoio da arte o indizível prefere estar em obra, sua manifestação acontece por uma abertura: interseção, pincéis, tinta, música ou teatro. Desenho, esboço ou pintura protegem as versões entrincheiradas. Algumas vezes até, lhes permite passear lá fora, num dia de sol.
No agora de quase tudo existem vestígios às novas elocubrações.

Ao reduzir a alma criativa aos termos reconhecíveis, isso pode significar seu fim. Muitas aptidões viram cinzas ao se encontrar com a educação formal. Ao alienista, o paciente sem nome e o homem sem rosto são a mesma coisa. Cabisbaixo, elabora alguma transgressão para reconduzi-lo a paz dos vegetais, condição de prosperidade à sua medicina.

Em se tratando da errância estética, algo novo se anuncia. Num meio despreparado para as lógicas da desconformidade, o esquisito propõe atitudes que advogam contra sua autoria. Imagine uma situação onde as referências sejam de natureza subjetiva, em um ponto de difícil acesso a epistemologia familiar, escolar, igreja. Para aprender o novo vocabulário é impreciso resgatar os esboços, deixados de lado como erro ou incompetência.

Eu e não-eu se integram na dessemelhança rarefeita a transfigurar clausuras. Martin Heidegger sugere rotas à criação: “O ser-criado da obra só se deixa manifestamente compreender a partir do processo da criação. Por imposição das próprias coisas, temos de aceder a levar em conta a atividade do artista para encontrar a origem da obra de arte.”

Assim é imprescindível ter visto algo mais que um “paciente insano”, para ser escolhido tradutor da singularidade, até então, indisponível. O avesso da palavra também abriga suas verdades. Um silêncio fica a ressoar, como a chamar atenção às regiões inexploradas da condição humana. Nesse processo não linear de experimentação pessoal a produção artística é cúmplice e meio. Ainda quando sombra ou rabisco ilegível, busca reaproximar aquilo que parecia perdido.

Um andarilho com pés descalços procura alguma interseção para entender seus refúgios. Como se fora um asilado, tenta ultrapassar os monólogos e multiplicar personagens nos gritos, rascunhos ou pinceladas. Existência fugaz a se perseguir dentro de si mesmo.

Nesse exílio delirante, a reviravolta pessoal pode conter as sagradas escrituras. Semiose fugidia da singularidade aprendiz, em tentativas de significar as letras do novo alfabeto.
A estrutura significante, nesse intermédio, extrapola e modifica, com sua presença, o entorno. O signo recém inventado desveste o dia-a-dia de banalidade e oferece outras leituras, num vocabulário a ser descoberto.

Na dialética de Jean-Claude Carrière: “Quanto maior o pintor, mais nos faz trabalhar. A obra que ele nos propõe sugere mais do que especifica. Desafia nossa visão, obriga-nos a completar os traços, a preencher as cores. Está aberta; muda enquanto estamos olhando.”

Nessa região inédita e ainda sem memória, um vidente aponta miragens. Para acessar as regiões tidas inacessíveis, é impreciso seguir seus rituais de introspecção, os quais se afastam do convívio comum, para retornar a ele modificando-o. Uma espécie de harmonia a estruturar o caos de mundos difusos.

A sensação de estar fora de si aparece como um achado, nem sempre descritível. Mesmo quando tenta falar sobre seus vislumbres, a pessoa pode ouvir sons irreconhecíveis. A clarividência ao seu redor pode referir uma nostalgia sem nitidez na trama das suas complexidades.

Nessa região de incerteza, pois de criação permanente, um saber primitivo se embaralha na coexistência de múltiplos personagens. Talvez o surgimento do sujeito ocorra concomitante a sua produção estética.

Cúmplice e atuante nessas aproximações com o universo irreal, o Filósofo Clínico participa da movimentação partilhante com um olhar de primeira vez. Ao aceitar o irresistível apelo do instante precursor no outro, contribui com o enunciado daquilo, até então, sem palavras para se dizer.

*Hélio Strassburger
Filósofo Clínico

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