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"Meus heróis morreram de overdose"

Ildo Meyer
Médico e Filósofo Clínico
Porto Alegre/RS


Um milhão de anos atrás, o mundo era bem diferente, e por incrivel que pareça, ainda carregamos certos traços e predileções herdadas de nossos antepassados. As emoções permanecem as mesmas desde que o mundo é mundo. Alegria, tristeza, raiva, amor, saudade, ódio foram sendo estudados, segmentados, refinados, mas a verdade é que em maior ou menor intensidade, sempre se fizeram presentes na humanidade.

Os homens das cavernas defendiam-se dos inimigos como podiam. Usavam mãos, pedras e ossos e só os mais aptos sobreviveram. Quando sobrava algum tempo, se acasalavam e procriavam. Alguém tinha que cuidar dos filhos pequenos, pois cobras, aranhas, ursos, lobos e até inimigos de outras tribos podiam atacá-los. O homem primitivo aprendeu que vivendo em grupo, poderia ter benefícios em relação a segurança, alimentação e acasalamento.

Os mais fortes eram destacados para as tarefas perigosas (caça, guerra, luta), enquanto os menos dotados fisicamente cuidavam das crianças, da alimentação, do fogo, da coleta de folhas e frutos. Os guerreiros eram respeitados e tratados como ídolos, ou até mesmo heróis, pois eram os responsáveis pela alimentação e segurança do grupo.

Enquanto os guerreiros lutavam, os que esperavam torciam pelo retôrno e sucesso dos lutadores, pois seu destino dependia deles. O sentimento ou a segurança de ter alguém mais apto, escolhido pelo grupo para defendê-lo dos inimigos invasores é a herança que trouxemos das cavernas.

Assim, escolhemos um time de futebol, que fará a representação de nossos guerreiros, e torcemos para que ele vença os inimigos invasores. Torcemos, aplaudimos, choramos, ficamos excitados e até agoniados mesmo sabendo que aqueles jogadores não são os nossos garotos, a nossa tribo. O que está em jogo não é a nossa sobrevivência. São apenas profissionais do esporte realizando seu trabalho e momentâneamente vestindo a camisa de um clube.

Escolher heróis que vão nos defender faz parte da história da humanidade. Quando crianças nossos pais são heróis e nos fazem dormir contando histórias de outros super-heróis. Mais tarde, escolhemos atletas, politicos, soldados, martires e outros personagens para torcer. Quase sempre torcemos pelo mocinho nos filmes, novelas e na vida. Os mais fracos e os injustiçados também ficam com uma parte dos votos. Torcer está em nossos gens.

O mais intrigante é que quase sempre somos incorporados por um sentimento de igualdade, familiaridade e amor por quem torcemos e desprezo pelos adversários,considerando-os como se fossem inimigos invasores querendo nos tirar algo precioso. Talvez isto seja um mecanismo de proteção para que não nos sintamos culpados por querer a derrota do inimigo.

Com o tempo, vamos descobrindo que nossos pais envelheceram, papai noel não existe, super homem é uma história de ficção, atletas são profissionais do esporte, politicos viraram carreiristas,ou, como dizia o poeta Cazuza, "nossos heróis morreram de overdose, nossos inimigos estão no poder".

O que aconteceu? Não se fazem mais super-heróis? Não estamos fazendo boas escolhas? Os invasores venceram a guerra?

A resposta está em nossas mãos. A genética continuará nos impulsionando a escolher novos representantes e torcer por eles. Ficar apenas torcendo para que nosso time e nossa escola de samba vençam é o mesmo que condenar nossos heróis a morrer antes de nascer. Os invasores percebem a alienação e tomam o poder.

Se quisermos reverter o quadro e vencer a guerra, temos que nos unir aos guerreiros que ainda restam e expulsar os invasores. Mas se quisermos ser heróis de verdade, precisamos não mais considerar os outros como invasores ou inimigos e querer derrotá-los.

Heróis são aqueles que nos momentos mais difíceis, quando todos os seus iguais estão perdidos, resignados, alienados e derrotados, conseguem forças para lutar. Lutam por justiça, bem comum, solidariedade, liberdade, esperança...

Heróis de verdade não se regozijam com a vitória e morrem de overdose. Heróis de verdade não tem sede de poder. Heróis de verdade não torcem. Heróis de verdade agem.

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