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Quando a emoção falou mais alto

Ildo Meyer
Médico e Filósofo Clínico
Porto Alegre/RS


Cada vez que chegava na casa de meu amigo, era recebido antes mesmo de tocar a campainha, pelos latidos do Borg, que completava sua alegre recepção com lambidas, rabo abanando, "abraços" com patas enormes e embarradas. Todas as demonstrações de afeto. Foi assim desde sempre, desde o final da adolescência até a idade adulta, quando a vida nos afastou.

Dia desses reencontro meu amigo, e entre abraços e trocas de telefone vieram as perguntas tradicionais sobre a família, pais, filhos, a vida em geral... e não pude deixar de perguntar sobre o Borg ... na hora parecia que eu estivera há apenas alguns dias em sua casa. Relembramos acontecimentos, aventuras, namoradas e as tardes que passávamos com Borg passeando pelo parque, atraindo a atenção das meninas. Fiquei chocado ao saber que ele estava com a saúde debilitada, em "estado terminal". Meu amigo estava em dúvidas sobre sacrificar nosso companheiro ou deixá-lo viver até o final e quis saber minha opinião.

Pensei um pouco no Borg, nos velhos tempos e me veio a cabeça uma antiga piada. Quer saber quem gosta mais de você, seu cão ou seu companheiro(a)? Tranque os dois no porta-malas de seu carro por trinta minutos e depois os solte, você verá quem vai lhe lamber e quem vai lhe morder. Cães são conhecidos como os melhores amigos do homem e de uma fidelidade eterna. Tenho uma teoria que sei ser controversa, mas afinal de contas, ainda bem que hoje temos a liberdade de pensamento e expressão.

Acredito que os cães são portadores dessa fidelidade porque não possuem a capacidade de pensar, funcionam através de reflexos condicionados. Se o cão pensasse como um humano, ficaria querendo saber porque foi trancado no porta-malas e exigiria uma explicação; mas ao contrário, seu instinto diz apenas que ao avistar seu dono ele deve ficar alegre, pois o mesmo vai lhe dar carinho ou alimento.

Cada vez que o dono aparece, o cão fica feliz, e quando o dono parte, o cão entristece, sem grandes viagens intelectuais. Animais não conseguem fazer deslocamentos longos com o pensamento, não têm noção de finitude, de amanhã, de relacionamento a longo prazo. Precisam satisfazer suas necessidades básicas: alimento, frio, carinho, sexo, dor...E o drama do Borg, seu sofrimento maior é a dor contínua e profunda, que seria aliviada com sua morte, nem percebendo que a vida para ele acabou. Quem ficaria pensando no Borg seriamos nós, humanos, que pensamos e sentimos a longo prazo.

Expus minha opinião e me ofereci para acompanhar o Borg na dolorosa despedida. Até aqui, a razão e a teoria estavam comandando o espetáculo, ou melhor, o funeral. Acontece que ao chegar na casa de meu amigo, fui imediatamente reconhecido e anunciado pelo latido inconfundível de alegria do Borg, que levantou, abanou o rabo como nos velhos tempos, entrou no carro como se estivéssemos indo ao parque impressionar as meninas, sentou no meu colo, lambeu minhas mãos e acabou com toda a minha tese sobre o seu sacrificio. Não precisamos falar, apenas trocamos olhares, nós três, e o carro voltou para a garagem.

Enquanto dilemas estiverem restritos a situações teóricas, a razão será soberana, mas toda a vez que alguém sensibilizar, tocar, mexer, balançar o outro, as emoções vão assumir o comando. Esse é o velho conflito entre razão e emoção, e sabem qual a função das emoções em nossas vidas? Avalizar, qualificar, dar sentido às nossas escolhas, para que possamos dormir com o coração em paz, escutando os latidos do Borg. A emoção falou mais alto.

Poderia encerrar este artigo no parágrafo anterior, ao estilo comercial de margarina, mas vou colocar uma pimenta a mais. O casal sabe que a relação está doente, o marido quase não fala, a mulher não quer ser tocada, os filhos sofrem com a deterioração da familia, todos sabem que é uma causa perdida e racionalmente é preciso terminar o relacionamento, sacrificá-lo para não mais causar sofrimento geral, mas emocionalmente não conseguem.

Encontram alívio trancando o outro no porta-malas ou escondendo-se e saindo ou libertando de vez em quando para lamber, rosnar ou morder, reações que errôneamente são interpretadas como perguntas ou cobranças, cujas respostas nem devem ser conhecidas. Quem é mesmo que não pensa a longo prazo?

Já pensaram quanta emoção e sentimento podem estar encobertos justo no gosto da boca que lambe, da face que é lambida e da lágrima que verte depois da mordida?

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