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RASCUNHOS FILOSÓFICOS SOBRE UM (NOVO) CONCEITO ÉTICO DE SUBJETIVIDADE EM CLÍNICA


Will Goya
Filósofo Clínico
Brasília/DF


Resumo: A Filosofia clínica tem sido equivocadamente compreendida como uma razão instrumental e criticada como não sendo nem autêntica filosofia, nem sequer terapêutica. Entretanto, nela subjaz um novo contorno fenomenológico do conceito de subjetividade e um núcleo ético capaz de orientar, com grande força terapêutica, costumes e modos de ser aos indivíduos que partilham junto ao filósofo clínico um cuidado existencial.

Palavras-chave: filosofia clínica, subjetividade, ética.


Um texto como pretexto de discussão, uma canção a tantas músicas sem letras, quem sabe apenas uma distração aos ânimos demasiadamente concentrados em seus focos de vigilância, não sei... O que aqui pretendo é mais um repensar algo da práxis clínica da filosofia, criada pelo filósofo Lúcio Packter. Em particular, gostaria de atender ao reclame da ainda tarda polêmica questão de ser ou não a Filosofia Clínica (FC) uma autêntica filosofia ou mesmo uma psicoterapia, como alguns dizem, outros repetem e poucos investigam.

Dos vários alardes ultimamente feitos a respeito da FC, principalmente dos que não a conhecem ou sequer estudaram dela alguma coisa, vale destacar, para começo, sua importância social. Politicamente ela tem o mérito de haver conseguido o que muitas doutrinas teóricas pretenderam, justificaram abstratamente, mas não saíram do papel inútil das intenções utopistas: a missão de levar a filosofia da epoché de volta ao “mundo da vida”, para a praça pública, para as questões vivenciais; pelas quais, a exemplo, Aristóteles justificou a lógica nascer e que, infelizmente, o academicismo pseudofilosófico afastou-a da Politéia, da cidade, do povo, em abandono nocivo da formação humanista, ficando os homens sem o amparo recorrente das discussões e resoluções de seus problemas cotidianos acima das futilidades.

Urge, pois, o tempo em que a sociedade, ante a crise dos seus alicerces, reconheça novamente na filosofia o seu valor específico: iluminar a estrada não apenas aos que se encontram perdidos, mas, sobretudo, em reconduzir às incertezas os que estão convictos de que o abismo é seguro. Como dizia o Estagirita, o ser humano é um ser racional, isto é, somente se exercitar sua potência.

A filosofia nasceu assim, como uma atividade, não como doutrina... Atualmente e muitas vezes nos debates universitários, ela virou disputa medieval de feudos epistemológicos, confundindo conflito de idéias com violência aos que pensam as diferenças.

Certamente que para além da reinserção mercadológica do graduado em filosofia, num país sem a profissão de pesquisador em ciências humanas, a filosofia, graças em grande parte ao embate heróico do senhor Packter, está de novo sendo discutida na àgora da mídia, dos hospitais, de outras faculdades aparentemente longe da filosofia, como na medicina, no direito, nas psicoterapias, na administração etc.

Pouco se pensa, entretanto, que a Filosofia Clínica não é só um espaço de consultório, mas uma redefinição ou uma rediscussão da ética e do conceito de subjetividade na antropologia filosófica e na práxis psicoterápica. Portanto, como assim me parece ser, não se trata apenas de uma discussão dos poderes terapêuticos da filosofia e ou das psicologias, mas da redefinição do humano por um avanço ou um novo enfoque fenomenológico. No caso, do conceito de homem, como indivíduo em suas relações consigo e para com o mundo e da linha limítrofe da subjetividade como vivência psíquica e demarcação teórica.

Oportunamente, e com alegria, é justo reconhecer a seriedade e alto nivelamento de algumas críticas à problemática que a FC vêm suscitando, em franco reavivamento das discussões em torno da filosofia à gente mais simples e carente do amparo estreito dos filósofos, do reconhecimento de seu valor.

Em especial um destaque ao belíssimo artigo, do zelo teórico do Prof. Renato Machado, em O que faz o filósofo clínico? (2004). Merece alguns comentários. O autor afirma “um duplo paradoxo: o filósofo clínico não é filósofo, embora se exija que o seja para obter a licença profissional; filósofo clínico não é terapeuta, embora a licença que obtém o qualifique para a prática da terapia”.

Isto porque ele entende que a FC é, de um lado instrumental e de outro porque não pretende nenhuma cura. Ressalva, todavia, que “a prática do filósofo clínico pode ser entendida como um exercício de vivência humana, no mais humanístico sentido dessa palavra”. Gostaria de poder ofertar à questão alguma luz, analisando isso, pormenorizadamente.

Irretorquível em seu raciocínio, equivocado em seus pressupostos, Renato Machado justifica sua leitura da FC pelo rigor da colheita literal do pensamento escrito e publicado da obra de Lúcio Packter.

Todavia, vale advertir, este não é um teórico fácil, não por ainda ser um autor vivo – contrariando a incompreensível tradição acadêmica brasileira de recusar diálogo com os que podem ainda debater –, mas porque sua obra, isto é, a Filosofia Clínica, não está conceitualmente concluída nos limites epistêmicos e metodológicos que seu esforço inaugura.

Limitar-se, portanto ao que se encontra já publicado a respeito, não somente impossibilita um bom entendimento sobre o assunto, como também pressupõe nitidez à uma escrita que merece adequadas releituras, contextualizações e retificações também, conforme o próprio autor recomenda. Essa é a missão por nós herdada agora, cada vez mais democrática e exigente, nos novos Grupos de Trabalho de Filosofia.

Dito isso, é preciso esclarecer o atual caráter teórico do trabalho de Lúcio Packter, em seus Caderno (s) de Especialização em Filosofia Clínica e demais publicações oficiais do Instituto Packter. Isto é, teórico não sob as exigências de uma fundamentação conceitual, embora se justifique na demonstrabilidade terapêutica, mas nos indicativos da práxis clínica de certa condição psíquica estrutural humana que, mesmo que não seja inédita (não o sei) – por reinvidicar um novo enfoque fenomenológico –, com certeza é original.

Tal hipótese de uma nova configuração do conceito de subjetividade seria, acredito, capaz de permitir de um lado, um desenho epistemológico formal, transcendente, a priori de ser humano e, de outro, uma compreensão vivencial, sobretudo terapêutica, do sujeito empírico, psicológico, singular.

Nesse sentido, apresento minha leitura de sua obra, procurando assegurar respeito ao princípio de fidelidade ao autor, que nunca se lhe alcançaria profundidade ou pertinência sem as devidas interlocuções através de suas aulas, para a explicitação dos conceitos básicos da estrutura do seu discurso, com elementos obtidos exclusivamente da análise do próprio discurso e de sua integração num todo articulado, que revela sua coerência interna.

O movimento do discurso “packteriano” deve ser acompanhado a partir do seu interior, buscando identificar possíveis cortes e fraturas e ressaltar sua harmonia e unidade estrutural. Na verdade, apesar de coerente, o discurso dele carece de harmonia visível e deixa, no leitor incauto, a impressão de uma construção rebelde à perfeita ordem das razões.

Certa dispersão é perceptível, assemelhando-se os conceitos filosóficos a uma “colcha de retalhos”, ou seja, um leque variável de correntes epistemológicas, colhidas ao longo da história da filosofia e contraditórias entre si, e é importante esclarecê-la na estrutura do meu próprio discurso de leitor. Isto me parece também um critério de fidelidade.

Não obstante, espero deixar claro nestes rascunhos um quadro conceitual básico de alguns conceitos que fundamentam ou justificam toda a arquitetura do seu pensamento a fim de também instar discussão às minhas próprias reflexões sobre.

Em consonância com os parágrafos anteriores, em minha opinião, é tranqüilo dizer que em FC mantém-se a concepção de que filosofia não “se aplica”, feito tinta nobre sobre os tijolos gastos do mundo humano. A definição de FC, localizada no site do Instituto Packter, de que “A Filosofia Clínica é a Filosofia acadêmica aplicada à clínica”[1], logo tem direito a reparos, se compreendida isoladamente.

Contudo, no bojo da ainda construção da FC, de sua problemática e proposta teórica, é necessário reconhecer que o sentido real é bem outro, a saber: nenhuma filosofia (e digo eu, muito menos a Filosofia Clínica) é pura tecnologia. Renato Machado está absolutamente certo, neste ponto. Felizmente, sem o saber – pelos seus estudos recentes em FC, descrevendo-se “como aprendiz nessa arte” –, ele nos ajuda a combater o resquício dessa prática positivista ainda freqüente nalguns poucos estudantes e colegas de formação em FC hoje no Brasil.

Mas somente neste aspecto sua crítica é ainda válida. O equívoco destes em simplesmente quererem aprender a prática de consultório, os procedimentos de montagem da Estrutura de Pensamento (a estrutura psíquica subjetiva do partilhante - EP) e a conseqüente utilização de Submodos (conjuntos de processos e ações práticas aplicadas segundo a conformidade do interesse clínico)[2] faz-lhes esquecer que metodologia não é um uso de técnicas.

Esse erro grosseiro sustentaria a possibilidade leviana de qualquer um, relativamente inteligente e com certa boa vontade, mesmo não-filósofo – isto é, sem reflexão filosófica –, praticar a clínica filosófica, reduzindo-a aos seus procedimentos técnicos, mecanicamente. Eles se esquecem que pensar filosoficamente é pensar a realidade por um conceito ou por meio de conceitos. Sim, existem técnicas na FC, enquanto clínica.

Porém, como qualquer filosofia, a FC é um pensar reflexivo, com análises, críticas e sínteses do real permanentemente recusado em suas aparências e reapresentado como entendimento justificado. Fazer filosofia, aos principiantes e leigos em geral, comumente traz esse engano de pensar como se houvesse uma ordem natural de primeiramente entender uma teoria para depois colocá-la em prática, sem ao menos duvidar se os problemas ou teorias apresentados são corretos, fundamentais ou mesmo se as perguntas foram bem elaboradas, antes do afoito interesse de respondê-las.

Exemplos outros, fora da FC, encontram-se nos cursos que se apresentam e se executam sob títulos como “Filosofia aplicada à Administração” etc. Assim, a pertinência da crítica do prof. Renato é, sobretudo, à cultura universitária de assim mal se compreender o estatuto do pensar filosófico em geral, confundindo-se práxis com prática. Crítica necessária, atuante, bem feita.

Também não é justo dizer que a FC seria exclusivamente uma forma nova de terapia, que se nutriu da história e da cultura filosóficas e que não se trata por isso de uma nova modalidade da filosofia ou de um jovem ramo da filosofia como clínica.

Malgrado certos recortes literais, tais como ser a FC “um novo método de fazer terapia fundamentado nas teorias filosóficas”[3], é preciso ler, quem sabe até ajudar a escrever o que se apresenta como uma idéia, pelo menos incomum, que da prática clínica de Lúcio Packter se fez brotar uma intuição e um delineamento filosófico de uma releitura dos conceitos de psicoterapia e de subjetividade, que adiante procurarei modestamente indicar alguns contornos de sua definição ou repercussão ética.

É imprescindível observar que da clínica de L. Packter[4] nasceu um esboço filosófico, enquanto práxis, mas não é uma doutrina, por mais propositiva que seja. Esclarecendo os termos, a FC, pura atividade prática, não é filosofia. Equivale a dizer que a práxis é pressuposto, mas não garante uma filosofia.

A filosofia é um esforço conceitual de compreensão do mundo que nasce dialeticamente, penso, dos conflitos da realidade que exigem ser respondidos ante as diversas soluções do passado e do presente que não mais podem atender aos seus reclames.

Deste modo ele sofreu a realidade das suas circunstâncias históricas com tal impacto e de tal maneira que ela lhe reivindicou mudar a compreensão que tinha dela. Ao pensar universalmente suas questões, Packter atualiza seu tempo aos seus contemporâneos. É a isso que se preza um filósofo nascer no mundo.

Incansavelmente, ele nos compartilha as suas vivências e reflexões para que tanto a clínica se aperfeiçoe, quanto enfrentemos o desafio de elaborar o embasamento teórico último que fundamente essa práxis. Mais que um novo método de fazer terapia, o diferencial da clínica filosófica é a nascente Filosofia Clínica.

Uma das possibilidades que se nos apontam nessa direção é a abordagem objetiva sobre o método de apreensão e entendimento do sujeito. Isso significa que os limites metodológicos da FC constituem os limites de existência e significados do partilhante envolvido. A ontologia, conforme a penso, em FC, isto é, o estatuto teórico do ser, definido em clínica como subjetividade, é destituída do idealismo puro que interpreta a experiência e que faz do pensamento um pensamento da medida.

O outro, o ser humano, sempre transborda em conteúdos que os meus olhos não alcançam. Por isso, mesmo sabendo que o sujeito é um substantivo próprio, também está sujeito; é qualidade do meu olhar, do método filosófico que à mim assegura a constituição de alguma realidade dele.

Inevitável o esforço de construir nos limites do possível – e a razão está a esse mérito – uma visão capaz de vencer a miopia do imediatismo seja do senso comum ou dos paradigmas dominantes e dogmáticos. Porque é no encontro entre filósofo clínico e partilhante que se afirma a região do ser. A ontologia pura cede lugar à existência.

O cuidar do outro, quando inevitavelmente de alguma forma estou, como filósofo clínico, comprometido com ele na relação intersubjetiva e na configuração ôntica, segundo a qual ele é percebido e interagido nos limites dessa percepção, obriga-me reconhecer que uma interseção clínica é geneticamente uma questão ética do saber respeitar o mundo do outro, olhá-lo ou ouvi-lo conforme suas necessidades mais reais de per si e, sobretudo, esforçar-me para não diminuí-lo por qualquer meu descomprometimento filosófico.

Avançando os limites impeditivos das correntes psicológicas e psicanalíticas, a partir da experiência de consultório, o prof. Packter julga necessário rever tais paradigmas em suas falácias de acidente, de generalização, que desconsideraram a força da existência individual e privilegiaram abstratas e falsas universalizações do mundo subjetivo.

Além do que mais condenaram as idiossincrasias da pessoa às vistorias e aos consertos – equivocadamente chamados de “curas” – do que souberam estimar o valor à liberdade de ser da condição psíquica humana. De uma epistemologia das psicologias, Packter busca radicalizar o conceito de subjetividade.

Bem sabido na contemporaneidade que a razão não é capaz de dar conta do absoluto, esta se justifica à competência não de buscar a verdade metafísica do universo humano, quem sabe talvez simplesmente alcançar alguma fundamentação num consenso sobreposto, prático ou político da pluralidade das exigências coletivas.

No bojo das ciências humanas ou do espírito, segundo uma metodologia que supera os limites positivistas das ciências da natureza, a FC se convoca ao âmago dos problemas mais importantes da especulação filosófica moderna: a possibilidade de se construir uma radicalidade metodológica capaz da negação máxima de qualquer pressuposto – em seu caso especificamente terapêutico – como ponto de partida.

Apriorismo que caracteriza toda a filosofia e garante universalidade e necessidade do conhecimento a que se possa predicar como verdadeiro. Tal radicalismo crítico no campo a priori do ser, do conhecimento do ser, é possível pelo acréscimo de novas categorias ao entendimento fenomenológico[5], em que o objeto apreendido (o outro, o partilhante, o si-mesmo) coincide plenamente com o modo como ele é.

Essa exigência do ser – isto é, da realidade – não se contenta com uma pretensa descrição de um independente “conteúdo em si”, da psique investigada. Mais do que simplesmente exposto à minha análise, ver[6] o outro, numa alteridade filosófica, pede compreensão, porque o real é atingido por intencionalidade e, dito isso, se processa por uma hermenêutica, com a busca do sentido dos diversos contextos da atividade humana e em particular na história singular de cada indivíduo.

Bem longe do realismo metafísico, da antiguidade clássica e da modernidade, o sujeito clínico, o partilhante, não é tido como um objeto atômico da realidade, separado intersubjetivamente do filósofo clínico, enquanto outro sujeito independente daquele. A FC insere-se na contemporaneidade (pós-moderna?) das noções de sujeito significante em si, rediscutindo concepções de subjetividade para as quais o indivíduo é visto não como unidade, mas como um ser duplo, em relação ao Outro (Lévinas), ou como um ser de razão dialógica (Buber), ou de dimensão pública (Apel, Habermas) etc.

Por meio do método fenomenológico existencial, ao menos por base, a FC descreve ou alcança na clínica a subjetividade por uma redução do aparente até o máximo possível e ou o necessário à clínica, isto é, às necessidades singulares dos que reclamam ajuda psicoterápica. Assim, o mundo humano é investigado pelo filósofo clínico em seu íntimo ou em sua trama na coletividade, segundo a altura dos interesses específicos de pesquisa.

Equívoco pensar e ainda comum ouvir que a FC, no seu estatuto filosófico, defende um subjetivismo empírico ou um relativismo antropológico. Ao contrário, caracteriza-se pela construção de uma plena objetividade formal, mas em nada restrita ao caráter idealista e unilateralmente intelectual de Husserl.

A eliminação dos impedimentos à compreensão do humano e o acesso à pretensa essência – de todo inalcançável – acontece por meio de uma específica e nova redução fenomenológica, proposta por Lúcio Packter, segundo a qual não se garantem evidências apodídicas pelas experiências descritas, mas pela compreensão das vivências descritas e ou verificadas nas diversas (e abertas ao infinito, por definição) categorias ou nos trinta[7] tópicos e submodos existenciais colhidos na história do partilhante clínico.

Noutra instância, enquanto clínica, o filósofo clínico naturalmente cuida, atua e se relaciona com pessoas, ou seja, com subjetividades individuais, psicológicas, que dizem respeito apenas ao processo terapêutico (com suas doutrinas, valores, corpos e incomensurabilidades vivenciais), únicas em relação aos fatores que se lhe encontram em interseção.

Neste porém, graças aos Exames Categoriais, é preciso reconhecer que os métodos terapêuticos, o uso de Submodos, que me permitem ir ao mundo do outro não se fixam especialmente em nenhuma corrente ou em nenhum filósofo em particular, as vezes fazendo o caminho inverso que muitos autores fizeram, por exemplo, optando pelas formas puras, apriorísticas ao invés da alteridade pelo diálogo.

Disso se conclui que a prática clínica exige profunda revisão epistemológica (fenomenológica, estruturalista, neopositivista etc) em que o clínico, como filósofo, se questiona: “será que eu conheço este de quem eu falo e a quem me reporto?” Muitas vezes não. Posso ter uma noção que o conheço... e aquele que eu estou aceitando na verdade ser aquilo que eu acho que é real ou uma parte dele que eu captei, independentemente da totalidade que não alcanço. Sobre a proposta metodológica empregada na FC, cabe melhor dizê-la nas palavras de seu próprio arquiteto:

“Na colheita das categorias aristotélico-Kantianas, cujo objetivo é localizar existencialmente a pessoa (questões imediatas e remotas, situações atuais e em cada momento de vida, histórico, sensações, temporalidade e relações com os objetos importantes), o filósofo usa de historicidade, fenomenologia, empirismo e analítica da linguagem, essencialmente.
(...)".

Como ilustração, consideremos o uso modificado que realizei a propósito da metodologia mencionada:

Historicidade:
a. Interpretação de fatos, conceitos, eventos na vida pessoal e suas implicações atuais e futuras (profilaxia) correlatas.
Fenomenologia; distante de Husserl, mas devida ao mestre:
a. Investigação do que aparece.
b. Divisões sucessivas em busca do dado de intencionalidade (John Searle).

Empírico e Analítico de Linguagem:
a. Pesquisar as relações entre conceito e termo.
b. Ater-se à experiência.

Na Esteticidade e na Matemática Simbólica outros métodos uniram-se a esses...” (Packter, s.d.: A, tomo 12).

À radicalização metodológica, ao rigor de tal concepção original de subjetividade, haurida ao longo de toda a história da filosofia, que a FC apresenta aos cuidados terapêuticos, defino, ou ao menos por enquanto indico, o que entendo por subjetividade holoplástica. Não se trata de uma plasticidade pelo lado de fora, da entidade psicofísica que se adapta a. Trata-se de uma predicação ontológica do sujeito que é constitutivamente aberto à sua redefinição, pelos tópicos existenciais da EP.

Esclarecido porque o filósofo clínico é sim filósofo, cabe agora dizer porque o filósofo clínico também é um terapeuta. Não se trata de um filósofo que, munido de técnicas psicoterápicas, colhidas aqui ou acolá, vale-se delas para aplicá-las, e sim como um hermeneuta que redefine seu olhar crítico do outro (e de si próprio) quando a vivência lhe reclama, reiteradamente a cada encontro com seus partilhantes. Hermenêutica que rediscute, sobretudo, a noção de psicoterapia, enquanto “cura” ou “patologia”[8].

A discussão do conceito de terapia precisa ser feita atualizando o centro de gravidade do binômio: patologia versus saúde psíquica para outra qualidade de “disfunção”, entendida como uma incompatibilidade funcional do sujeito frente aos elementos tópicos de sua própria Estrutura de Pensamento, manifestando-se choques, bloqueios ou embaraços existenciais internos frente às suas vivências do mundo.

Ao se pensar assim, a psicoterapia (não-biológica, psiquiátrica) precisa ser vista sempre como uma questão geneticamente epistemológica, que se investiga caso a caso, individualmente, segundo as idiossincrasias de cada subjetividade empírica e com os dados históricos inigualáveis de cada um. Em termos práticos ou segundo uma clínica filosófica, só é possível entender qualquer sentido de uma psique desestruturada via análise empírica com fundamentação transcendental da inter-relação que os tópicos da EP têm entre eles mesmos e a associação disso com o problema evidenciado em clínica.

Em outros termos, só há clínica se houver filosofia. Mas, qual o tratamento psicoterápico que o filósofo clínico proporia ao seu partilhante, a fim de reestruturá-lo em seu modo de ser?

Mesmo vencida essa dicotomia, a FC ainda garante um critério de julgamento sobre o partilhante capaz de orientá-lo a caminhos existencialmente favoráveis e igualmente ajudá-lo a evitar outros que lhe seriam contraproducentes. Assim como nas psicologias, a FC também traça uma linha limítrofe entre o fim, as condições e os meios para atingi-lo.

Ela é teleológica, quer um resultado mediante conhecimento de causa. Todavia, o processo de ajuda existencial ao partilhante, entendido como psicoterapia, não é uma “reconfiguração feliz de sua EP”, conforme o pensa Renato Machado, mas uma orientação à autonomia. Longe dos mais variados significados tradicionais do termo, trata-se aqui do sentido de liberdade subjetiva que só podemos compreendê-la no reconhecimento e análise da Estrutura de Pensamento em questão.

Na FC o respeito ao modo de ser do outro, não apenas aos seus dados axiológicos, mas à sua subjetividade holoplástica, afirma, segundo o alcance ou o acréscimo de minhas próprias reflexões, uma nova noção de valor: a potência de autenticidade, ou seja, a capacidade de promover uma existência (ou uma função existencial) assumir o maior valor que sua grandeza é capaz de ser.

Numa palavra, suscitar o máximo de eficácia às realizações subjetivas de cada um, segundo a autogenia[9] da Estrutura de Pensamento considerada. Enquanto tal, este valor possui uma validade irrestrita na medida em que garantiria um total respeito à liberdade existencial do sujeito, orientando-lhe terapeuticamente no uso de Submodos[10], isto é, gerando sobre seus costumes e sua existência em geral, se possível e ou necessário, um novo modo ser, buscando soluções aos seus conflitos internos, muitas vezes independentemente dos interesses axiológicos culturais, plurais ou hegemônicos vigentes fora dele.

Para além dos limites da esfera da pura racionalidade, a minha leitura de Packter entende uma ética distinta tanto do a priori lógico quanto do a priori axiológico, na esfera dos sentimentos. Na FC o a priori axiológico reconhece sua legitimidade específica apenas quando inserido nos Exames Categoriais[11], em uma autogenia da EP. Fato que permite averiguar clinicamente que, inclusive, nalguns sujeitos não se verifica nenhuma manifestação emocional ou sequer a necessidade da existência ou predominância de dados axiológicos.

Ausente quaisquer “conteúdos”, tipologias psicológicas ou metafísicas da natureza humana universal não haveria porque também uma pessoa sofrer reconduções sanitárias ou morais. Nessa leitura, não subsiste uma forma transcendental de dever ser ou de bem/amor na subjetividade holoplástica. Isto é maiormente uma constatação clínica.

Dessa forma, a FC não prolonga, como simples aperfeiçoamento, a continuidade das leituras dos dados fenomenológicos das análises de natureza intelectual (Husserl) ou das vivências emocionais, distante das experiências intelectual e religiosa (Scheler). Pensar uma ética, na FC, é pensar um valor moral para além dos imperativos ou das emoções, embora possa haver justaposição.

Trata-se de uma ética da potência, para além do Bem e do Mal, mas em nada privilegiando uma vontade de poder, como um instinto natural (Nietzsche). Para além dos postulados filosóficos de quaisquer concepções definidas de certa natureza ou condição humana, conforme lista a história do pensamento. Todas estão circunscritas ou relativamente verdadeiras, por coincidência ou não, se estiverem ajustadas às singularidades subjetivas. Indefensável querer que um paradigma ético, ainda que longinquamente, abarque a infinitude de cada um na história de si próprio e ou na das sociedades.

Se esses rascunhos indicarem um válido caminho de pesquisa – enquanto intuições nascidas tanto da minha práxis clínica, quanto das releituras feitas – conjeturo dizer que a Filosofia Clínica acrescenta, talvez ainda nas mesmas direções, o que a fenomenologia existencial já expôs a respeito. Conseqüentemente, antevejo que a FC cria sim um novo valor, para além de Kant e da ética da responsabilidade de Scheler, justamente porque retira do conceito de moralidade seus valores de bem/mal e as hierarquias de amor/ódio.

As divergências não afetam o princípio do kantismo, que rege o mundo ocidental em todas as relações, ou seja: age de tal forma que a sua ação seja uma norma universal de conduta, sempre como um fim e nunca como um meio. Nos estatutos da FC o que se questiona é o cumprimento da norma como um dever puro e simples.

Discorda-se também de Scheler, quando este buscou garantir a universalidade da ética pela experiência emocional dos valores, fazendo da afetividade o tópico fundamental da escolha. O resultado da crítica envereda por uma genealogia dos juízos de valor, não da introspecção psicológica, mas recolocando em debate a questão da subjetividade e das relações de autogenia que atuam sobre a vontade.

O fato de novas categorias de entendimento serem acrescentadas à fenomenologia enseja uma ética porque ensaia uma reflexão em dois campos, a saber: 1. do ponto de vista teórico, é cogitável a fundamentação de uma ética da potência nos parâmetros aqui rapidamente delineados? 2. Anteriormente, o que está ao campo da observação e análise clínica, é inevitável que a práxis da FC tem pressupostos éticos, o que justificaria investigar quais seriam[12].

O que nos permitiria fundamentar uma ética na FC, a fim de que os juízos de valores possam ter uma significância predicativa de verdadeiro ou falso e saibam nortear a atividade humana na conformidade de um entendimento filosófico-clínico, não deve se apoiar em nenhum realismo metafísico, religioso ou cultural.

Portanto, na FC eles se colocam acima das influências do absolutismo de uma ética individual, nem advogam a ênfase de uma ética essencialmente pública (seja universal, seja em versões comunitárias, relativistas), e superam o debate entre o individualismo/universalismo/racionalismo versus holismo e leituras antropológicas (social, histórica, hermenêutica ou contextualista).

Na medida em que isso permanece ainda uma leitura fenomenológica existencial, também não subsistem mais condições transcendentais ou formais cuja materialidade dos valores objetivos advenha mediante uma percepção emocional pura, por se tratarem de fenômenos axiológicos irredutíveis.

Diferentemente, na FC a manifestação fenomenal dos valores éticos, enquanto ato intencional na realização de quaisquer valores, parece-me que, certifica uma nova fundamentação: o acesso à uma objetividade dar-se-á não pela observação fenomenológica da experiência vivida pelo sujeito psicológico, mas pela investigação das condições e circunstâncias da manifestação fenomenal do valor de uma força vital subjetiva.

Nesta concepção ética, bom é todo valor que se manifesta no ato intencional que permita o exercício existencial da pessoa, potencializando o que ela é fenomenologicamente em interseção com o mundo, isto é, tudo que maximiza o modo de ser único e talvez flutuante de cada um. E por atitude ética do filósofo clínico tudo o que, por esforço e competência necessários, puder fazer ao partilhante com o propósito de lhe garantir uma autogenia forte em sua interseção com o ambiente – o conjunto de pessoas e coisas importantes e complexas – no qual está inserido.

Ora, não coincidindo necessariamente ética com busca de “bem-estar” ou “felicidade”, dadas as holoplásticas configurações subjetivas, pode haver escolhas pelo sofrimento, sem a conotação moral de um valor mau. Naturalmente que isso só é validado através da metodologia filosófico-clínica de acordo com os elementos ou categorias internas da Estrutura de Pensamento e aplicação de Submodos compatíveis a cada um.

Critério terapêutico ambivalente porque essa força vital subjetiva ou potência de autenticidade pode se apresentar de duas maneiras. Em princípio, é desejável, ao menos possível conseguir a tão desejada autonomia do partilhante clínico sobre os seus pesares, enquanto uma questão interna, localizada no restrito universo da sua subjetividade. Esse tipo de autonomia é vista no limite clínico intra-organizacional à Estrutura de Pensamento.

Noutras palavras, o conceito de autonomia psíquica geralmente pressupõe independência de fatores externos sobre o controle da própria vontade, tendo por oposto graus de alienação antiética. Enfatizando, isto apenas estabelece uma verdade se e somente se após a feitura de uma autogenia clínica constatar-se um importante entrave na existência ou perda daquela força vital, devido a vínculos de subjugação ou reificações etc.

Neste caso, a FC cuidaria do partilhante no sentido de orientá-lo a uma reorganização produtiva dos elementos constitutivos da sua Estrutura de Pensamento, para o seu próprio bem. Todavia, contrariando, por citar as correntes freudo-marxistas, longe dos estigmas paradigmáticos, a FC constata, pela exigência da práxis clínica, outra manifestação de autonomia, capaz de revelar a existência de Estruturas de Pensamentos individuais que se unem de forma indissociável, às vezes até confusa, feito uma única EP com outras pessoas ou mesmo com objetos inanimados.

Neste caso a potência de autenticidade é otimizada no sentido da autonomia como pertencendo a uma análise e tratamento de âmbito estrutural. Eticamente, por conseqüência, seria condenável orientar ou mesmo conduzir uma pessoa a se separar dos seus mais rígidos apegos – sejam pessoas e ou coisas –, por motivo de sofrimento ou por incompatibilidades ideológicas entre o filósofo clínico e o partilhante. A priori e sem os devidos Exames Categoriais e, sobretudo, classificando-a de “patológica” seria à FC um crime ético. Nenhuma resposta carismática vale mais que as infinitas perguntas que o mistério do outro nos suscita.

Não poderia ser de outra forma, compreendo uma ética nascida da clínica e não para a clínica; um filósofo terapeuta e não um terapeuta que estudou filosofia. É o que a FC soube dar à luz. No sentido que apresento, a Filosofia Clínica é uma terapia ética. Uma ética de tautologia, que não pretende no ser humano uma evolução moral apoiada em qualquer doutrina abrangente, de um preceito, valor para outro.

Quando a necessidade exige um cuidado clínico, o partilhante busca alguma mudança no conjunto de suas vivências pessoais, não necessariamente no que pensa ou sente de si, mas na condição da sua Estrutura de Pensamento, que não se lhe satisfaz. Podem ser choques tópicos, conflitos nas categorias existenciais de sua totalidade psíquica, insuficiências ou excessos, ausência de submodos, etc.

Coisa que não se pode saber sem devida análise. Importa que ele, sintomaticamente com assuntos imediatos (em geral), encontra-se numa situação limítrofe, da qual se sente prisioneiro ou aquém de sua plena liberdade existencial. A esse estado de ser que, segundo os Exames Categorias previamente feitos, reivindica ser diferentemente do que é ou se encontra, pode ser chamado de condição de inautenticidade.

Este novo conceito filosófico de sujeito (Estrutura de Pensamento) e do método que o revela (Exames Categoriais) ligam-se à noção de prática clínica (Submodos) por uma inseparável configuração triangular eqüilátera, não apenas constituída de lados, mas com uma área e ângulos existenciais.

Entender a FC fragmentando esta configuração decorreria necessariamente numa razão instrumental, em que se preferiria uma mera técnica de conhecimentos mais ou menos utilizáveis, por quaisquer interesses, acima dos fins a que se destinam, ou seja, a eficiência psicoterápica.

Pensar a subjetividade num Exame das Categorias sem a consoante elaboração/leitura de uma Estrutura de Pensamento condizente, seria puro, inútil academicismo, cujo único valor estaria na vanglória da reflexão que se afasta do mundo para melhor compreendê-lo teoricamente, mas se esquece de a ele voltar. Afinal, de que vale saber um método se não se pode dele valer-se para o fim a que se destina?

Uma Estrutura de Pensamento, frente aos Submodos, sem Exames Categoriais é antiético, por fazer do outro o que eu quero que ele seja, a partir de pré-juízos. É reificá-lo como meu objeto de estudo e prática, como tão flagrantemente se observa nas teses psicológicas e filosóficas que engessaram, cada qual em disputa, o que condenaram ser a “sua verdadeira” e universal natureza humana.

Submodos sem Exames Categoriais ou Estrutura de Pensamento, apreciados nas múltiplas técnicas psicoterápicas existentes – e quase todas eficazes nos propósitos a que se destinam – incorrem no conhecido equívoco de se valorizar a técnica antes do seu intento. Fazer antes de saber é algo como insistir com a chave certa na fechadura errada. Mais que simplesmente não abrir a porta é aprisionar-se.

Sei que para um rascunho há muitas palavras aqui, sobretudo com uma idéia ousada, apesar de interessante. Do ponto de vista da fenomenologia, a FC propõe (se é que bem entendi o pensamento do filósofo Packter), dentre outras coisas, uma ética-antropológica, um espectro de compreensão aberto por categorias que é antes de tudo uma responsabilidade e depois um pensamento da responsabilidade em busca dos infinitos caminhos da verdade e do pensamento.

Nesse particular, penso, há concordância com Emmanuel Levinas, segundo o qual o sentido primeiro surge da moralidade. A questão ético-gnoseológica da Filosofia Clínica perante a intencionalidade do ego é esta: quem posso ou não ser em interseção com o mundo, conforme minha autonomia?

Isso ao invés de um idealismo teorético totalizante: quem sou, segundo qual perspectiva além de mim ou nas minhas puras representações? Com a ontologização do ser humano corremos sempre o risco de alienarmos esse mesmo ser por ideologias, não raro, autoritárias travestidas de um discurso “sobre” a realidade. Ao menos pelas intenções, este rascunho cumpre o seu papel: convidar os erros à aprendizagem e as verdades à revisão.

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