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*Uma disposição aventureira


“Como as grandes obras, os sentimentos profundos significam sempre mais do que têm consciência de dizer.”
Albert Camus


Há muito tempo se investiga a natureza da escuta clínica. Seu alcance, derivações e os contornos da interseção. Sua face de meia-verdade a mantém incógnita, mesmo sendo fundamento a muitas abordagens terapêuticas. Estas, inconformadas com seus rastros nem sempre compreensíveis, perseguem os esboços para algo mais.

Os estudos e a prática de consultório acrescentam novas facetas às provisórias certezas. Revela sonoridades e perspectivas a esse momento único do encontro terapêutico. As pesquisas apontam para a necessidade de decifrar singularidades, seus sentidos e derivações, antes das intervenções de maior alcance.

Um território inexplorado ensaia suas dúvidas. A interseção segura na mão evasiva, mesmo quando ainda não sabe por onde seguir. Talvez a observação dos fenômenos descreva melhor a estrutura dos ruídos:

- O Filósofo ter uma escuta precária de sua própria escuta, enquanto tenta ouvir o outro;
- A busca apressada de realizar hermenêuticas ou querer corrigir os conteúdos de fala da pessoa;
- Insegurança do clínico em transitar por territórios diferentes;
- Confundir tópicos da historicidade do sujeito com os seus próprios;
- Barulhos externos a interseção, como: buzina ou música alta;
- Incapacidade por outros motivos: gripe, vertigem ou paixão;
- Deixar de perceber o não poder falar ou a vontade de nada dizer como assunto imediato.

Um pré-estágio sem pressa pode ajudar. Nessa mescla de autoconhecimento e clínica didática, é possível qualificar o saber sobre os tópicos predominantes no diálogo. Assim o trânsito pela retórica do partilhante e as construções compartilhadas podem ter mais eficácia na relação de ajuda.

Embora seja um bom começo, é preciso ir além da reciprocidade para saber ouvir. Implica em correr riscos, aprender a língua onde a pessoa exercita sua circunstância. A magia da palavra pode transformar autor em leitor e vice-versa. Não é incomum terapeutas apresentarem termos agendados resultante dos atendimentos.

Octávio Paz, em sua prosa poética ensina: “O poeta inocente não precisa nomear as coisas; suas palavras são árvores, nuvens, aranhas, lagartixas. Não essas aranhas que vejo, mas essas que digo. Caeiro espanta-se com a idéia de que a realidade é inacessível: aí está ela, frente a nós, basta tocá-la. Basta falar.”

Antes mesmo de se ter acesso a fonte de onde tudo se origina, pode ser importante aprender os limites da interseção com a própria voz. Papel existencial a se articular com esse lugar epistemológico, mesmo quando procura não pensar sobre si.

O sujeito filósofo parece desenvolver um artifício para enxergar a própria escuta. Interseção com os arranjos e a plasticidade do fazer clínico. Assim o agendamento mínimo pode servir de moldura aos conteúdos da narrativa. Ao agendamento máximo cabe estruturar procedimentos íntimos a singularidade: palavras, gestos, lugares ao atendimento, alternativas a terapia.

A liberdade desses concertos discursivos pode favorecer ensaios desconstrutivos. Nem sempre em busca de preencher espaços vazios, também acrescenta páginas em branco à espera do instante transformador. Inclusive a rebeldia estética pode ser começo às novas versões.

Michel Maffesoli e as poéticas da imprecisão: “Ao nomear, com excessiva precisão, aquilo que se apreende, mata-se aquilo que é nomeado. Os poetas nos tornaram atentos a tal processo.”

Na contradição do silêncio a reivindicar atenção, o fluxo de idéias elabora figuras sem contorno definido. Com ela uma matéria-prima se oferece a desafiar as possibilidades conhecidas. Ao se colocar no lugar recém enunciado pelo outro, talvez se possa traduzir aquilo impossível a semiose escrita.

O vocabulário da singularidade pode referir temas com significado próprio, mesmo quando se utiliza de expressões contidas no dicionário comum. Nesse sentido, pode ser importante superar os limites do mundo atual. As releituras costumam viabilizar essa decifração.

Ao relembrar alguns fundamentos da escuta clínica, interessante notar o que se vai deixando de lado, quase sem perceber o inaudível por entremeios da trama especulativa. A passagem secreta em vias de se descobrir, pode ser um ângulo desmerecido ou um idioma ainda sem tradução. Talvez o ouvido consiga realizar a visão ofuscada pelas verdades consagradas. Na disposição de compartilhar é possível redescobrir a ficção como cópia infiel da realidade.

O sentido único e compreensível em cada um poderia se perder de vista, não fora o interesse em dialogar com a fonte desses desajustes. Existem desvios ao estranho labirinto, onde as lógicas rascunham sentimentos sem palavras. Ao descobridor resta estar no lugar, na hora e com a pessoa certa, para vislumbrar a região da alma presente em cada expressividade.

Jean-Jacques Rousseau e a estética da vida: “Uma das maiores vantagens do músico é a de poder pintar as coisas que não se podem ouvir, enquanto é impossível ao pintor representar aquelas que não se podem ver.”

Através dos ecos recém chegados, o discurso faz referência a inúmeras possibilidades a ressoar, bem depois da sessão, onde o aparente vazio de um tempo a se arrastar, se desfaz naquilo que gostaria de esquecer.

As inéditas regiões realizam um convite nem sempre reconhecível. Podem surgir a ouvidos despreparados para vislumbrar as originalidades no agora das sessões. Existem lugares onde os sentimentos não precisam de palavras para traduzir suas versões. Quando elas aparecem costumam afastar a inocência de algo novo que se inspira pra nascer.

Essa dialética com a clausura dos monólogos refaz questionamentos a cada instante. No início, se tem um saber que sabe que não sabe, no entanto, se coloca no lugar privilegiado de quem busca.
É importante aprender a ouvir as ressonâncias da interseção. Sendo a escuta um procedimento criador de espaços, é necessário estudar sua tez revestida de surpresas. Espécie de disposição aventureira a perseguir fenômenos além do mundo conhecido.

*Hélio Strassburger
Filósofo Clínico

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