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Coisas que significam outras coisas

Beto Colombo
Filósofo Clínico
Criciúma/SC


Na colina tinha uma bica d’água onde agricultores serviam-se dela e saciavam a sede. Então, uma gruta de pedra foi erguida e dentro dela uma imagem da Santa colocada, agora aquela água virou água benta e milagrosa. Será que verdadeiramente ela é milagrosa?

Tomo um copo d’água, a água mata a minha sede. Não me pergunto se a água é verdadeira, ela apenas é cristalina, fria... O fogo é o fogo e ele significa apenas fogo, significa a si mesmo. Ele aquece, ele ilumina, ele queima. Perguntar se ele é verdadeiro não faz sentido. Assim como a flor é uma flor, o máximo que posso perguntar é se ela é perfumada, se ela é bela...

Aquela água da torneira clorificada torna-se benta se colocada num cântaro no altar da gruta, assim como a flor pode ser uma confissão de amor ou até uma afirmação de saudade, se jogada sobre uma sepultura. O fogo torna-se símbolo sagrado nas velas dos altares e nas piras olímpicas.

Rubem Alves, no livro O Que é Religião, com sabedoria diz que há coisas que significam outras, são as coisas / símbolos. “Uma aliança significa casamento; uma cédula significa um valor; uma afirmação significa um estado de coisas além dela mesma.”

E se alguém simplesmente usar uma aliança na mão esquerda sem ser casado? Uma cédula pode ser falsa. Uma afirmação pode ser uma mentira. Por isso, quando nos defrontamos com as coisas que significam outras coisas, é inevitável que levantemos perguntas acerca de sua verdade ou falsidade.

Aquela fonte no morro, que era apenas uma bica d’água, tornou-se um lugar de peregrinação porque aquela gruta construída deu um novo significado e a água que brota dela, agora é benta e cura gastrite, reumatismo e faz milagres.

Fui à casa de um bom amigo e encontrei um antigo altar da igreja de Santo Agostinho que outrora era a mesa de celebração da Eucaristia nas missas dos domingos, onde o vinho transformava-se em sangue de Cristo e o pão no corpo de Cristo, e agora é apenas uma mesa de jantar de uma família como outra qualquer.

Quando um artista pinta um quadro, ele está dando o seu significado àquela pintura. Outra pessoa que nada sabe sobre aquele artista dará a sua interpretação conforme o acervo agendado no seu intelecto, na sua estrutura de pensamento.

Um beijo dado por Maria em Jesus Cristo provavelmente é amor e carinho, agora um beijo dado por Judas significa outra coisa.

Algumas vezes nos deparamos com palavras de alguém que fala e o interpretamos dando o nosso significado àquela situação sem dar a chance dele colocar “sua verdade”, apenas julgamos e condenamos como se fôssemos juízes: isso é verdade, isso é mentira. Verdade pra quem? E mentira pra quem? Aquela verdade pode ser a interpretação da minha verdade.

Algumas vezes, antes mesmo de ouvir o outro, antes de prestar atenção naquilo que ele está dizendo, apenas estamos ouvindo nossos pensamentos para formularmos o que vamos dizer em seguida. Será que estamos ouvindo o que o outro fala ou apenas o que estamos sentindo e significando conforme nossa estrutura de pensamento e talvez com nossas verdades?

E às vezes nós transformamos o que o outro está falando conforme nosso significado em objeto de concordância ou discordância. Tenho aprendido que é preciso manter-se a literalidade do falante, limpando a mente de todos os ruídos e interferências durante a fala alheia.

Ouvir o outro sem oferecer julgamento, sem significar, apenas entregar-se ao outro e diluir-se nele. No início da minha prática como terapeuta em consultório esse foi um grande desafio, não foi fácil, mas hoje sei que é necessário e possível. Sou testemunha disso.

Estamos juntos
Beto Colombo
beto@anjo.com.br

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