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*Entre uns e outros

“Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas.”
Fernando Pessoas


A atuação cotidiana de cada um pluraliza sua estrutura entre uns e outros. Mesmo quando não perceba esse fenômeno tão próximo, segue refém de seus encantos ou dissabores. Instantes por onde os personagens se multiplicam, em nuances de um espetáculo quase imperceptível.

No discurso da historicidade, os inéditos costumam se apresentar como algo recém chegado da memória, sensação de estranheza ou na invenção de termos a própria pessoa. Querer corrigir essas singulares narrativas pode desmerecer a semiose como anúncio. Faceta da subjetividade a permanecer insignificante, não fora o caos diante de si.

Os arranjos de ser incompreensível, agenda traços do mesmo na interseção com os outros. Percursos pelos refúgios da intencionalidade, até então, subversivos ao seu autor. A busca por integração nem sempre é desejável. Algumas verdades devem permanecer onde estão.

A ficção assim descrita se institui numa quase realidade. Seus paradoxos legitimam o mundo ao redor. O incomunicável também se diz nas entrelinhas do velho conhecido.

No cenário silencioso da interioridade as novas forças elaboram suas retóricas. Mesmo a biografia mais conhecida, desliza para alguma amnésia, como se insinuasse outras fontes para si. Assim a desordem pessoal reivindica mais espaço ao herói desconhecido. Desenvolturas de protagonista a traduzir anterioridades consideradas sem sentido.

Os deslocamentos pelo universo dos outros, não fragiliza ou exclui o mundo do eu, em muitos casos o fortalece. Destaca as subjetividades dentro da mesma estrutura e faz referência aos irreconhecíveis subterrâneos.

No dizer de um Fernando Pessoa: “Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada (?), por uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço.”

Nem sempre é possível haver alguma conversação entre os papéis existenciais. Alguns podem existir no mundo das idéias, outros no cotidiano lá fora. Seus deslizes apreciam as incompletudes para se manter.

Existem àqueles que, ao celebrar determinados contratos, estimulam sua contradição: os amantes que resolvem tornar oficial a relação, para depois, título de propriedade à mão, se separar. Noutros casos, são os vícios sustentados na obrigação de acabar.

Seu desassossego elabora conjecturas de aproximação aos universos de aspecto distante. Ao profanar os sagrados territórios, é possível vislumbrar as várias máscaras do personagem.
Nos roteiros de ator principal e coadjuvante, a aptidão persuasiva equivale a uma verdade possuível. Lugar onde os álibis são perfeitos e sustentam o ir e vir dos papéis.

Para Antonin Artaud: “É preciso acreditar num sentido da vida renovado pelo teatro, onde o homem impavidamente torna-se o senhor daquilo que ainda não é, e o faz nascer.”

Nem sempre as convenções sociais intimidam a invenção ou descoberta das expressividades. Uma propedêutica cotidiana se insinua ao existir focado numa só figura. Espécie de lucidez delirante a descrever visibilidades na errância com os rituais conhecidos.

Interseções sem passado ou futuro existem num vislumbre pelo agora fugaz. Versão entrelinhas de ser ator ou atriz numa obra desconhecida, apesar de tão íntima.

Ao perturbar insignificâncias, a vertigem de um fundo que se abre pode transbordar outros eus. O espetáculo da singularidade acontece, muitas vezes, imperceptível aos princípios de verdade. Nele a desconstrução costuma se anunciar pelo acréscimo de termos agendados.

Em Jorge Luis Borges: “A base da geometria visual é a superfície, não o ponto. Esta geometria desconhece as paralelas e declara que o homem que se desloca modifica as formas que o circundam.”

Seu vir-a-ser deriva da conversação entre seus tópicos estruturais. Autogenias onde a encenação da vida real prepara seus roteiros. Prescreve verdades como se fora um discurso alheio. Sua representação, inicialmente sem sentido, promove reconhecimentos entre a primeira e a terceira pessoa.

A atuação assim descrita, longe de ser desvario, contradiz a ilusão de ser apenas um. Promove saber a interseção aprendiz, onde uns e outros se deslocam a conjecturar sobre a cara metade de anjos de demônios.

O inesperado articula-se na invisibilidade de um talvez. Papéis existenciais apreciam as dialéticas de transgressão aos extraordinários refúgios.

Sua lógica forasteira pode aproximar dessemelhanças em ação na mesma pessoa. Mesmo irreconhecível compartilha feições como distorção ou rasura. Apesar da concepção mundana, sua principal companhia será a solidão, nem sempre conhecível.

*Hélio Strassburger
Filósofo Clínico

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