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*Simulacros da mulher cafajeste


“Havia venenos tão sutis que, para conhecer-lhes as propriedades, fazia-se mister experimentar seus efeitos em si mesmo. E enfermidades tão estranhas que era preciso tê-las sofrido, para compreender-lhes a natureza.”
Oscar Wilde


Inúmeras tramas contidas nas coreografias da mulher cafajeste expressam aptidões de sedução e conquista. Artimanhas de fascínio se traduzem em uma estética vigarista. As palavras bem escolhidas e adequadas indicam a raridade na arte de enfeitiçar. Seu corpo insinua excessos de território livre. Desnuda-se em promessas que não poderá cumprir. Seu êxtase permanece suspenso.

Circunstâncias de exceção a perseguem. A maquiagem se atualiza no imprevisível dos instantes. Nela desejos inconfessáveis percorrem desvios e atalhos em busca de meias-verdades. Cremes, perfumes e outros adereços ensaiam preliminares insuperáveis. Seu olhar já não se reconhece em frente ao espelho. Desintegra-se em simulacros de ser outra.

Durante o dia se realiza em lógicas de funcionária. Quando a noite chega, institui paradoxos para outros papéis. Artifícios eficazes mascaram intenções e refúgios bem guardados. Diverte-se ao manipular seu charme irresistível nos percursos de incompletude. A palavra maldita é incapaz de trair-se em diálogos de se deixar levar.

Luz e sombra convivem nas lógicas de precária harmonia. Inauditas versões transgridem suas possibilidades. Seus beijos são juras para alguma violação. Indecifrável jogo não fora os ditos, gestos e sorrisos a denunciá-la como mescla de anjo e demônio. Na insatisfação das buscas a sarjeta atualiza encontros consigo mesma. As ruas por onde transita lhe concede boas vindas. Percorre cabarés e bordéis na companhia promíscua da solidão compartilhada. Sua alma de carisma inevitável guarda segredos bem protegidos.

Um incêndio de grandes proporções se manifesta na essência de caráter itinerante. Provisoriedade onde a vida acontece na vertigem fugaz de um talvez. Na intraduzível fonte das equivocidades uma representação atualiza rituais de antropofagia. Idéias, sentimentos e sensações se prostituem no acaso dos encontros. Canalhas, bêbados e outros noctívagos, apreciam os dotes de sua vida ordinária. Malditas brumas aprisionadas na contradição com a luz do dia.

A miscelânea devassa ensaia atuações em palcos de extravagância. No bordel ou nas praças, uma estética encontra um cenário ideal aos seus deslizes. Na companhia efêmera dos acasos, transgride, por breves instantes, a ilusão de não estar só. Fragrâncias de raridade deslizam em seu corpo inteiro. A sedução articula-se como menina frágil e indefesa. Nestas quimeras de atiçar a imaginação um universo de possibilidades trama suas armadilhas.

O prazer das conquistas descartáveis só fica atrás de seu desejo interdito por encontrar alguém. As luzes da cidade são cúmplices e a boemia constitui seu álibi perfeito. Neles exercita graça e exuberância ao transitar pelos botecos, cinemas e cafés. Nuances de desamparo percorrem seu rosto. Reflexos de equívocos sem fim permanecem reféns deste lugar onde o certo e o errado se confundem.

É de sua natureza juntar fantasia e realidade numa coisa apenas. Sua melhor defesa, quando em flagrante delito, é a aparência inocente conjugada a beleza incomum. Vestida de corpo inteiro por seus personagens, é capaz de capturar qualquer um. Nas tramas de iludir aprecia contrariar expectativas de amor eterno ou união estável. A instabilidade dos seus delírios se delicia entremeios de chegar e partir.

Sua condenação é permanecer livre. Acorrentada a própria subjetividade, desmerece vínculos de maior alcance. Homens e mulheres desavisadas se atraem pelo gosto exótico destas peças de ficção. Profanação das juras de para sempre no lugar qualquer de todo lugar.

Reinventa-se a cada dia ao modificar cabelos, experimentar pinturas, maquiagens e perfumes. Risos e gargalhadas em frente ao espelho que não a reconhece mais. Inéditas roupagens constituem absurdos cenários. Vivencia riscos incontáveis para tornar viável algo que não virá. O álbum de fotografias não faz jus aos seus desempenhos. O retrato revela protagonistas tímidos e quase esquecidos. Sua história parece sem passado ou presente, embora se delicie com o depois de amanhã.

Na rotina de alternar disfarces demonstra intimidade em seus papéis. Até o blefe da mulher cafajeste parece real. Em frente ao espelho distorcido ensaia disfarces de alma nova. Nas ruas poderia passar despercebida, não fora a tentação de novas exibições. Uma estética da tapeação esboça seus feitiços.

Alma burlesca em desdobramentos no fenômeno carnaval. Experimentações ao acaso insinuam desempenhos irresistíveis num jogo de cena pilantra. Assim procura se manter nalguma distância segura dos envolvimentos de maior profundidade.

Sua vida de caprichos e dengues lembra uma peça de ficção maldita. Consegue tecer enredos nas entrelinhas minúsculas dos instantes. Caricaturas bem arrumadas alternam ternura e graça em cotidianos de enganação. Sua representação extrapola os palcos de privacidade e invade as ruas. Diverte-se com artimanhas de encantar. Atribui seu jeito de ser ao querer difuso e errante do destino.

Antídotos poderosos impediram, até hoje, a contaminação pelos próprios venenos de sua lascívia. Atua sempre em terra nova, onde esparrama armadilhas de atração e conquista. Nas feições meigas e graciosas a arte do blefe adquire contornos de legalidade. O faz de conta impressiona tão bem que é impossível perceber as vontades detrás das alegorias. Sorrisos, lágrimas e palavras interagem na medida das circunstâncias. Alterna-se em rascunhos de multidão para ludibriar os próprios sentimentos. Nela a epistemologia desconfia e subtrai as emoções para manter armadilhas e paixões.

Uma lacuna permanece impreenchível nas aventuras e deslizes de profanar acordos. Para ela, a vida desencontra-se em convívios na divisa entre abstração e sensações. Um convite irrecusável escolhe aromas, cores e sabores para seus desempenhos. Entremeios da solidão que a devora, profana-se na fenomenologia das conquistas.

Talvez a melhor caricatura da mulher cafajeste seja seu rol interminável de simulacros. Desconstituir o passado é seu modo de seguir em frente. Na superação das investidas resignifica-se em evasivas e dom de iludir. Artesã da volúpia, sua farsa sugere uma incrível galeria de personagens. Apelo irresistível a sugerir paraísos de exceção.

*Hélio Strassburger
Filósofo Clínico

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