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Como se chama aquela coisa que se usa na orelha, tem uma fumacinha, e sempre se coloca do avesso?

Lúcio Packter
Pensador da Filosofia Clínica


Amortagem é o amor magoado porque a moça realizou um aborto. Felirrapagem é a felicidade que escapou mediante uma derrapagem. Calosso é uma impressão de pressão nos ossos, seguida de dor, acompanhada frequentemente de calor.

Se você procurar no Aurélio por amortagem, felirrapagem, calosso, não vai encontrar.Amortagem, por exemplo, ficaria entre amor-próprio e amortalhar, caso existisse.

Mas também não encontraria Nepoti, que é uma caneca com café morno. Papaimãe você sabe o que é? Esta é aparentemente simples, ainda que leve a enganos, e é como uma menina de 16 anos chama por sua mãe.

Acidentes vasculares, traumatismos cranianos, problemas existenciais graves podem ter como características em comum a necessidade de novos termos, por vários motivos: a pessoa pode ter apagado como se diz algo, uma nova vivência pode não encontrar em nossa biblioteca de vocábulos algo pelo qual possa se expressar, a inadequação dos termos e muitas outras razões.

Um dos caminhos que a Filosofia Clínica propõe para isso é a construção, quase sempre por aproximação, de neologismos. Para um oceano de coisas que vivemos as palavras podem ser pobres e acabam arruinando imagens e sons que procuram traduzir.

O homem tem 63 anos, teve um acidente vascular, não lembra como se diz “copo”. Uma opção é pedir a ele para falar o que lhe vier à mente e que pareça ter alguma relação com o que deseja manifestar. Exemplos: opo, zopo, titioto, po, poço. Isso causará problemas adicionais?

Às vezes, sim, mas geralmente traz mais benefícios e dá seguimento a condições antes impedidas de ocorrência. É provável que o stress do esforço de tentar algo e de se frustrar na tentativa encontre nos neologismos um modo confortável; longe do modo usual dos acontecimentos, porém uma alternativa funcional em muitos e muitos casos.

O alcance deste procedimento vai além de casos relacionados a palavras esquecidas ou de termos que desconhecemos e dos quais necessitamos. No consultório podemos utilizar esta ferramenta para experiências de outras naturezas. Exemplo: em um sábado à noite a garota está sozinha em casa, não quer sair e não quer receber pessoas, e também não deseja ficar sozinha... Não encontra uma vivência que resolva este conflito – que para ela é um paradoxo.

O que ela pode fazer? Bem, se ela estudou o tópico Significado, elemento importante no estudo da Filosofia Clínica, pode considerar se não seria o caso de se utilizar dos neologismos existenciais. Ou seja, construir, por aproximação, uma vivência que represente o que se passa, que dê passagem à experiência a ser vivida, ainda que não tenha a ver com o caminho habitual pelo qual as experiências se passam.

Ela então mistura estes elementos e decide tomar um café com biscoitos amanteigados diante do computador conversando calmamente com sua amiga Flávia que mora há seis meses na Suécia. Eis o neologismo existencial que ela encontrou. Não é o que ela procurava, assim como o homem que pedia um “opo” querendo um copo também.

Não pense que em caso de uso de neologismos existenciais a pessoa terá menos, parte do que precisava, uma distorção, uma manobra cuja resultante é um paliativo qualquer. Tenho uma pequena coleção de relatos em consultório de pessoas que obtiveram tanto com estes procedimentos que passaram a utilizar com certa frequência seus neologismos.

Há ainda neologismos complexos, nos quais palavras, como estas que ilustrei, podem se transformar em frases inteiras, em parágrafos, capítulos de uma vida, desde a gramática até períodos de vida.

Um filósofo clínico utiliza estes elementos em consultório após o minucioso estudo da historicidade da pessoa, de sua Estrutura do Pensamento, pois temos casos nos quais é desaconselhável determinados processos clínicos.

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