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ALERTA: RUIDOS NA TRANSMISSÃO

Ildo Meyer
Médico e Filósofo Clínico
Porto Alegre/RS


Na tentativa da comunicação verbal, nem sempre o que um fala é o que o outro escuta, e o mesmo pode ocorrer na forma escrita, quando o que se apresenta pode ser lido e entendido de maneiras diferentes.

A origem desta falta de sintonia pode partir tanto de quem envia como de quem recebe a mensagem, pois uma série de interferências internas e externas estão em jogo.

Nem sempre é fácil exprimir em palavras pensamentos e emoções, ou, em outros termos, é difícil transmitir com clareza um sentimento ou uma emoção, e talvez o motivo desta dificuldade seja a própria emoção, mas isto é um outro assunto...

Se por um lado existe a dificuldade em transmitir, receber também tem suas peculiaridades. Pessoas escutam, lêem, vêem e depois interpretam a mensagem de acordo com suas visões de mundo. Distorções também podem acontecer por desatenção, expectativa e ansiedade em assimilar de imediato o conteúdo da mensagem recebida. Um velho ditado popular já dizia “cada um escuta o que quer ouvir”.

Arthur Schopenhauer, filósofo alemão, dizia que o mundo não é mais do que “representação”, tendo de um lado o objeto constituído a partir de espaço e tempo e de outro a consciência subjetiva acerca do mundo, sem a qual este não existiria. O objeto, a coisa em si, passaria a ser representada por símbolos, idéias, valores, utilidade, de acordo com as visões de mundo de quem os estivesse utilizando.

Desacertos, brigas, mal-entendidos, quebras de contrato, divórcios podem vir a acontecer por descompasso no relacionamento, na comunicação ou em ambos. A literalidade das palavras poderia ser uma tentativa válida de sintonia na comunicação?

O ser humano é essencialmente verbal, utiliza palavras tanto para explicar como também para enganar, iludir, persuadir.

A linguagem verbal pode utilizar meios complementares, tais como gestos e expressões corporais, (“o corpo fala”), sem falar em recursos da própria palavra, trazidos pela diferentes culturas, tais como gírias, metáforas, simbologias, etc.

Experimente literalizar a explicação de um pensamento ou sentimento sem o uso de metáforas, simbologias e você terá idéia da dificuldade. Todos esses recursos utilizados podem ser eficientes para prender a atenção do receptor, mas não necessariamente ao conteúdo da mensagem. Podem inclusive, ter efeito contrário ao desejado, desviando a atenção e dificultando o processo de compreensão.

Mesmo quando do uso de uma mentira, isto nem sempre é um sinal de hipocrisia, pois às vezes acredita-se tão firmemente na versão ou visão criada, que a mentira está sendo contada inicialmente para o próprio criador e a palavra emitida já sai distorcida da realidade.

Há que se considerar que palavras nem sempre acompanham a velocidade do pensamento, e a diversidade humana representada por vivências, crenças, expectativas, bagagem cultural torna o processo de comunicação eficaz uma missão praticamente impossível. Assim, palavras, emitidas ou recebidas em plena literalidade, não seriam confiáveis e seriam incompletas em seu significado.

Talvez uma alternativa menos sujeita a falhas fosse prestar mais atenção aos atos, ao comportamento do que as palavras e promessas. Confúncio já dizia: “Atue antes de falar, e portanto fale de acordo com seus atos”.A distância entre o que as pessoas dizem e fazem muitas vezes não é percebida nem por quem fala nem por quem ouve.

Quando alguém nos dá a entender determinada situação, dizendo as palavras que queríamos ouvir, nossa reação natural é encaixar as palavras em nossa visão de mundo e acreditar no que ouvimos, muitas vezes ignorando o comportamento e funcionamento incoerente do prometido. Nossa escolha foi prestar atenção somente no que nos interessa e nos iludir com as palavras, ignorando o objeto, a situação ou a conduta de quem promete.

Sob esta ótica, a palavra seria uma forma de manipular a representação de mundo das pessoas. Uma ferramenta poderosa, que dependendo do uso, pode criar, levantar ou destruir visões de mundo. E esta ferramenta pode ser ou vem sendo utilizada por políticos, publicitários, professores, artistas, terapeutas e formadores de opinião muitas vezes de maneira irresponsável, sem medida de suas conseqüências.

Uma palavra mal interpretada, uma virgula fora do lugar, uma informação recebida sem reflexão, podem destruir pessoas, relacionamentos e até mesmo países.

Passemos a um exemplo prático: ao se anunciar um shampoo como o melhor para cabelos crespos, o que significa a palavra melhor? Qual a sua dimensão? Um político ao prometer um melhor tratamento a saúde pública, um terapeuta ao dizer que assim será melhor a seu paciente, um parceiro ao prometer melhor empenho, um professor ao indicar o melhor livro, estão pensando e transmitindo o quê? E o que foi captado pelo interlocutor terá alguma relação com o que foi pensado ou dito? Tudo depende de valores, elementos essencialmente subjetivos, que podem divergir completamente na concepção dos interlocutores.

Cuidado com as palavras. Palavras são anões. Exemplos são gigantes. Um verdadeiro intelectual não é medido pelo que lê, escreve ou fala, e sim por uma vida comprometida com suas idéias.

O critério de escolha de um político, terapeuta, companheiro, produto ou serviço ao se basear em palavras, titulações ou estética pode ser falho e gerar desilusões. A observância do comportamento, comprometimento e coerência entre o falar e o fazer são condutas mais apropriadas tanto para quem fala como para quem ouve, não esquecendo de que o silêncio pode falar mais do que mil palavras.

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