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Poéticas do amanhã*


“Antes eu era transparente,
agora sou cheio de cores.”

Arthur Bispo do Rosário


A inédita conversação nos recantos da palavra delirante possui característica de anúncio. Sua perspectiva de grande abertura oferece derivações a insinuar vontades e perseguir refúgios existenciais. Uma filosofia dos devaneios sugere novas menções.

O hospício cotidiano, esse lugar legitimado por força de lei, atualiza seu discurso em paradoxos com olhares desfocados. Enquanto a enfermaria multiplica a fenomenologia dos delírios, o lugar reinventa a camisa de força da normalidade e persegue os poetas enlouquecidos pelo não-dizer.

No caso da vírgula contida nesses atalhos, dizeres desconsiderados prosseguem em rituais de ilusão. Sua estrutura significante faz referência aos incríveis vislumbres, numa palavraria sem sentido aos endereços já superados.

A condição de miserabilidade física do sonhador medicado faz reverência à medicina dos enganos. Essa como ciência da correção discursiva constrói seus muros e janelas sem vista, para proteger a aldeia lá fora. No entanto, o que são portas e grades ao viajante que aprendeu a bater asas e conheceu a arte de ultrapassar paredes ?

Ao sujeito assim disposto, a vida ensaia outros jeitos de existir. Propõe o curso invisível da resistência solitária. Sua estrutura de lógica desconhecida possui totens bem protegidos da intervenção alienista. Esse ritual aprecia compartilhar esboços e invenções nas lógicas do delírio.

Clarice Lispector compartilha: “Nunca vi uma coisa mais solitária do que ter uma idéia original e nova. Não se é apoiado por ninguém e mal se acredita em si mesmo. Quanto mais nova a sensação-idéia, mais perto se parece estar da solidão da loucura.”

Em si o lugar das ventanias se encontra com o lugar das promessas insatisfeitas. É improvável ser alguma reminiscência portadora de verdades, pois sua maquiagem, aspecto de borrão, oferece expressividades na velocidade incrível dos desatinos. Espécie de refém da normalidade a perambular pelos corredores da cidade. Os loucos por liberdade possuem sobrevida na caminhada pelos labirintos de si mesmo.

Nesse lugar as geografias modificam suas fronteiras com velocidade inacreditável. Um território onde a linguagem pode ser cúmplice ou adversária para se entender melhor. Na interseção com o logos desconhecido os parágrafos fazem referência ao fora de foco e seu aspecto de não-ser.

Evidencia as brechas da ciência normal, possivelmente rascunhos sobre novidades impossíveis à ótica anterior.

Ao não referir coisa com coisa uma quase explicação se oferece. Percepção vadia a desvelar óticas desconsideradas. Suas circunstâncias sugerem novas legendas que aguardam, num tempo sem pressa, o olhar das irregularidades criativas. Na voz dissonante do êxtase precursor, um apelo tenta descrever seus originais no suplemento imprevisível dos discursos.

Philippe Willemart diz assim: “Todas as palavras, expressões, cores e formas, sons e melodias estão lá, bastaria acariciá-los para atraí-los e fazer com que emerjam. A intensidade do afago mede o talento do artista (...). A obra está nascendo, mas as palavras ainda faltam.”

Nos escritos do agora cadáver desliza um projeto marginal em sobras, desvios e demais incompletudes. Com a metamorfose significante de cada um, a poesia singular acontece em várias direções. Um projeto de paixão dominante deixa rastros na mensagem descontinuada a sustentar eventos. Ao perseguir novidades se reencontra com o velho álbum entreaberto.

Na multidão das promessas não cumpridas, se insinuam outras versões. Por esses intervalos sem fronteira uma fonte atualiza a arte de cuidar jardins. O evento peregrino oferece preenchimentos aos vãos desmerecidos.

A lógica dos excessos contém rumores de alargar limites e desconstruir estereótipos de perfeição. Suas evidências articulam blefes desconstrutivos de longo alcance. Essas poéticas restariam intocadas, não fora a encenação subversiva a transgredir certezas. O mundo da terapia inclui o saber de que as raridades, muitas vezes, só possuem nitidez quando vistas de longe.

Semelhante as ventanias em ânimos de revolta, a perspectiva desconsiderada se movimenta noutras direções. Incrível as pessoas capazes de autogenia no curso de uma só idéia, antes de concluí-la já é outra. Uma epistemologia difusa se realiza na interseção entre ordem e caos. Nesses casos, talvez o discurso filosófico consiga trazer das lonjuras reflexivas a linguagem simples das coisas profundas.

Em Autran Dourado: “O bom do meu mestre imaginário era que ele não tinha idade. Era mutável como o vento (...). Contraditório e mesmo absurdo, Erasmo Rangel não tinha a virtude pequeno-burguesa de querer ter sempre razão, ser definitivo, conseqüente. ‘Graças a Deus’, dizia ele, ‘choco-me comigo mesmo, não sou sempre o mesmo.’”

Texto demarcado pelo contexto infrator e inacreditável, onde as vírgulas são cúmplices de algo por dizer. Mesmo assim, na multidão do instante, é possível ouvir o silêncio a insinuar desfechos. Ao terapeuta-artesão cabe esculpir sua obra numa interseção compreensiva, lado a lado com o outro em busca de melhores dias.

Na pessoa plural, a menção dos termos agendados aponta em múltiplas direções interpretativas. Assim como o leitor interfere no texto com sua leitura, o clínico não sai ileso na relação com o sujeito sob seus cuidados. A atividade do Filósofo Clínico também refere uma elucidação para desenvolver autonomias.

Ao sabor incerto das inéditas regiões, um personagem é capaz de múltiplos papéis. Mais que alimentar convicções sustenta dúvidas, especulações, sugere procuras. Nesse sentido, importa mais ultrapassar a primeira vista, onde nada se via, para voltar e superar a sensação de estrangeiro diante do próprio olhar.

O sonho do poeta internado se embala na embriaguez vertiginosa das miragens. A arte de pensar sem tipologias encontra aliados na descontinuidade dos ímpetos narrativos. A eficácia da descrição substitutiva está em ampliar o teor do discurso original. Nele se reinventa a desrazão em poéticas do amanhã.

*Hélio Strassburger
Filósofo Clínico

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