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Anotações sobre a estética das travessias*


“Uma pessoa que, há semanas, me repetia sempre as mesmas coisas, executa algo na cena da análise que transforma todas as suas coordenadas, suas referências e engendra novas linhas de possível.”

Felix Guattari


Existe uma região de face indeterminada, mutante e de aparente sem nexo, por onde transitam eventos de epistemologia desajustada. Sua agitação refere moldes sem sentido. Muitas vezes, sequer tem oportunidade de se estabelecer como algo traduzível, enquanto sobrevoa hipóteses.

Uma ação assim descrita se assemelha a um compêndio das ventanias. Esses conteúdos de alma nova apreciam o instante caótico para insinuar derivações. Seu existir fugaz surge na intimidade com os rascunhos do exagero.

Os enunciados de aspecto delirante protegem outras razões. Espécie clandestina a transgredir limites, parece sem direcionamento para compartilhar a nova configuração estrutural. Seu viés de associação marginal possui dificuldade em conversar adequadamente com o mundo lá fora, no entanto, evidencia habilidades para transitar internamente.

Assim surge a expressividade desatinada e sem papel existencial definido. Ao mostrar um irreconhecível diante do espelho, a crise pessoal pode ser um ensaio noutras direções existenciais. Isso costuma se traduzir na emancipação das vastas e desconhecidas regiões da própria estrutura de pensamento.

A desestrutura assim descrita possui fonte de inspiração e matéria-prima. Sua historicidade e modos de existir vão oferecendo vestígios sobre o que está por vir. Na expressividade caótica a esteticidade pode ser precursora de novos caminhos.

Os desdobramentos costumam oferecer ao sujeito, além da incrível dificuldade em lidar com seu caos pessoal, ter de administrar o medo e as inseguranças das pessoas ao seu redor. Um processo de reinvenção se esboça na versão exaltada de si mesma.

Diante da propedêutica das crises um indizível atua em linguagem própria. Nesse sentido, é possível desenvolver uma arte de silenciar atenta e investigativa. Atualizar padrões, vislumbrar fraturas existenciais, os gestos e sons de sentido próprio, numa reciprocidade com os desatinos da mudança.

A desordem criativa parece querer dizer algo ainda sem palavras. Sua face ilegível se oferece em busca de tradução ao próprio autor. Esses eventos de aspecto insensato costumam interromper algo bruscamente. Seus episódios de barata voando apreciam surgir como caricatura.

Uma província desconhecida parece surgir a partir da periferia da própria estrutura. Jeitos de ser até então desconsiderados deixam entrever seu espírito de multidão. Assim uma estética das travessias aprecia se mostrar, como uma intermediária a dialogar com a simbologia das crises.

É importante saber que os gestos e atitudes de aspecto brusco possuem historicidade. Interagir com a matéria-prima de viés delirante significa bem mais que classificar e medicar o fenômeno recém chegado.

A singularidade em instante de caos, por um lado, na ótica de sua anterioridade, possui uma expressividade decadente, e, por outro, refere sinais de vida nova. São momentos de deslocamento de uma realidade à outra. Nem sempre é possível compartilhar essa sensação de não pertencer a lugar nenhum.

Sua visibilidade acontece nalgum ponto entre real e irreal, numa perspectiva fugaz e insólita a vida conhecida, como se fora contradição a sugerir algo indizível. Seu viés avassalador aprecia a semiose sem palavras para comunicar eventos explosivos. Esses episódios controversos possuem uma epistemologia de anúncio, entremeios do próprio tema que a conduz.

Numa interseção reflexiva com a natureza precursora do desassossego, pode ser possível compreender os ímpetos dessa estética das travessias. Um aprendizado sobre o novo constructo estrutural e sua aptidão dialética.

Sendo a crise um lugar, por excelência, de mal-entendidos, veja-se o caso da psiquiatria, a esteticidade seletiva tem se mostrado um procedimento eficaz. Através de um percepcionar, roteirizado por traços, pinturas ou rabiscos, pode ser possível focar a crise, até se conseguir entender o que ela oferece.

A estrutura caótica desses momentos parece recriar espaços vazios em busca de preenchimentos. Sua característica de inquietude aprecia influenciar e modificar seu entorno existencial. A expressividade hostil as anterioridades modela a excitação e a magia dos viajantes sem rumo.

Na vertigem do instante transformador o excepcional atalho segue incompreendido. Uma espécie de ritual de passagem entre o antes e o depois de qualquer coisa. Suas problemáticas se referem mais a intensidade e força do que a continuidade.

Ao filósofo clínico interessado no estudo dessas essências, também é significativo visar à abertura quase imperceptível, em meio á cortina de fumaça dos jogos de cena. Os fenômenos assim descritos são capazes de simular eventos e, a partir deles, se reinventar em caóticos anúncios discursivos. Uma lógica de náufrago aprendendo a nadar, em meio à tempestade.

*Hélio Strassburger
Filósofo Clínico

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