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Eremitas urbanos

Sandra Veroneze
Filósofa Clínica
Porto Alegre/RS


Vira e mexe soa um sinal dentro de mim. É o toque de recolher. Uma força muito grande, intuitiva, toma conta da minha consciência, do meu coração. Só há uma coisa a ser feita: ir para o deserto.

O deserto pode ser meu quarto, um banco de praça, a mesa de um café, uma estradinha de terra em meio ao mato de acácia ou eucalipto. Pode ser também um parque no final de tarde, a areia da praia cedo de manhã, ou então o aconchego de uma pousada na serra.

O deserto pode ocupar minutos, horas, ou até dias do meu tempo. Nele as outras pessoas inexistem. Fico sozinha, mesmo com gente por perto. Mato toda saudade de mim e a única interação permitida é com meus livros, com minhas canções preferidas e com ele, o silêncio...

Nem todos entendem. Alguns chegam a ficar chateados se não atendo ao telefone, se não respondo e-mail, ou se não conecto o msn. Nessas ocasiões, por breves momentos, chego a pensar que, como diria o filósofo, o problema são os outros.

É muito interessante ir para o deserto. Observo melhor meus sentimentos. Presto atenção nos pensamentos que circundam minha mente. Atento para as reivindicações do meu corpo. Reviso meus sonhos, minhas expectativas, ambições e realizações. Toco minhas emoções com carinho, me pego no colo. Dou-me todo afago de um colo de mãe. E faço descobertas incríveis.

O lado bom é que me olho no espelho, frente a frente. Não raro, me encanto com o que vejo, e que o corre-corre do dia-a-dia se encarrega de deixar escondido atrás de agendas apertadas, compromissos inadiáveis, escassez de tempo... Vejo qualidades, virtudes...

O lado menos bom é quando a saudade já está satisfeita e começa a prevalecer a rotina do deserto. É nesse momento que começo a me decepcionar com o que vejo. Os defeitos saltam aos olhos, me deparo com fantasmas horríveis. Que angústia! Tanto a melhorar, tanto a ser feito!

Este exame de consciência sempre prenuncia algumas mudanças em minha rotina. É um exercício de extrema valia. Saio do deserto muito melhor preparada pra enfrentar as agruras do cotidiano, e cheia de saudade dos outros! Afinal de contas, o problema não são eles, não. O problema sou eu! Tem uma máxima que ilustra isso: ‘não é a altura da montanha que incomoda, mas sim a pedra dentro do sapato”.

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