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O tempo em que se vive

Sandra Veroneze
Filósofa Clínica
Porto Alegre/RS


Houve um tempo, até poucos anos atrás, que eu me olhava no espelho e tinha quase a certeza de ser uma grega ou romana perdida no tempo.

Tudo que se referia ao mundo dos castelos, batalhas e simbolismo religioso me interessava. Estudei as guerras antigas, armas brancas, arquitetura sagrada, códigos de honra das sociedades de guerreiros, paganismo, civilizações desaparecidas, alquimia, mitologia, astrologia, numerologia...

Adotei a filosofia estoica como modo de viver (tanto quanto possível), enrijeci uma disciplina para uma vida verticalizada nos pilares de honra e caráter, defini uma estratégia própria para fazer render meus dias. É desta época minha forte admiração pelo imperador filósofo Marco Aurélio e suas meditações, pelos cavaleiros templários e guerreiros samurais. Prevalecia a premissa do ‘faça o que tem que ser feito, independente do quanto doa’.

Depois me entreguei a uma nova fase, mas ainda ‘perdida’ no tempo.

Surgiu o encanto pela Renascença. Leonardo da Vinci passou a reger meus dias, com disciplina e organização, sim, mas atentando mais para o lado bom e florido das coisas.

Criatividade, inventividade... Ainda estava nos castelos, mas já não ouvia mais tanto os sons dos cavalos, cutelaria, correntes... Ouvia a música dos salões, observava o corte perfeito das roupas, admirava a grandiosidade dos jardins. Havia tempo para os poemas e saraus e concertos, chás ao final da tarde, passeios pelo bosque, para a gastronomia refinada. Para observar a neve se acumulando lá fora, noites longas e dias curtos, crianças correndo pela casa...

E assim, meio que de repente, passei a deixar a contemporaneidade viver mais em mim e não há evidência mais forte do recorte histórico atual nos meus dias do que o uso e abuso das tecnologias disponíveis.

Às vezes penso que não é a gente que vive uma época, mas uma época que vive na gente.

Conheço, por exemplo, um colecionador de objetos cuja alma encontra o maior dos confortos quando está entre suas moedas, documentos, correspondências e especialmente livros antigos. Dimythryus é o nome dele.

É gostoso observar o entusiasmo com que se envereda na busca por colecionáveis. Cada descoberta rara é garantia de ter ganho o dia, a semana... Os dias sem voltar no tempo lhe parecem monótonos, sem sentido... Acho charmoso e reconheço sua importância no resgate histórico, no registro dos tempos... O que as pessoas ‘normais’ chamariam de quinquilharias, para ele são objetos da maior afeição.

Inegável que isso tudo fala muito da personalidade de cada um. Tem uma frase, que a cada dia me parece mais verdade, que diz o seguinte: não nos identificamos com o que não habita em nós, nem por atração e nem por repulsa. Se não existe em nós, nos é indiferente. Penso que, às vezes, estar perdido em outro tempo é a única ou uma das poucas formas de se encontrar.

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