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Discursos da água*

“Tanto no líquido derramado quanto nas folhas levadas pelo vento, a desordem existe só para o observador incauto. Águas e folhas movem-se rigorosamente dentro de leis estabelecidas pela natureza.”
Donaldo Schüler


Uma fonte de matéria-prima se oferece num curso provisório que perdura. Ao ser incapaz de descrever idas e vindas, suas rotas e desvios parecem rumar para lugar nenhum. Um ponto onde tudo começa e se acaba para reiniciar.

Sua transparência se dissolve em rastros de horizontes verticais, aprecia contar sobre suas origens ancestrais na confluência entre hoje e amanhãs. Riachos e córregos deságuam em rios a história plural. A interseção mista com as margens alterna a leveza dos passeios com a força dos tsunamis.

É possível creditar-lhe a inspiração da vida ao seu redor, embora também ela seja refém de origens desconhecidas. Sendo uma versão sempre outra, se institui transgressora aos frascos que tentam lhe aprisionar, assim apodrece para se reinventar e voltar como água nova.

A aptidão de suas químicas se revigora com as mudanças. De tempos em tempos seu fluxo aperfeiçoa velhas combinações, algo sem sentido imediato, mas com significado próprio. Seu equilíbrio não-linear opera em cursos de armadilha conceitual. A sustentação dialética a faz retornar outra ao mesmo leito.

Nessa incessante variação de rumo, as buscas se espraiam em rituais de mistura e combinação. Aqui sua retórica se encontra com as forças da terra, do fogo e do ar, um espaço onde se cogita sobre o silêncio das profundezas em contraste com a agitação das superfícies.

Os mares e rios embalam oferendas de auto-ajuda. Sua interseção com os demais elementos acontece na alternância entre a brisa e os temporais. Ao desdobrar das esteticidades é possível decifrar a linguagem das tormentas, traduzir os deslocamentos por onde as águas apreciam tornar-se.

Sua intencionalidade de aparência fugaz guarda segredos e raridades. Eventos de aspecto estranho sugerem uma fronteira aberta entre as nascentes e o mar. Ao ser vulnerável aos agendamentos da convivência, ensaia mergulhos e sobrevôos para considerar novas vias de acesso ao não-ser das beiradas. Estranha liberdade em contato com as margens, o céu, as neblinas. O precipício da incompreensão discursiva parece esperar um sol que não vem.

Seus trajetos possuem uma correspondência sem ruídos. Sua travessia segue a deixar coisas para trás, embora a sedução das paisagens busque cristalizar a fluência dos percursos. As águas assim dispostas se encaminham para o lugar nenhum de todo lugar. Suas margens podem ser moldura ou contraponto à trama das idas e vindas.

Uma disposição aprendiz parece sentir aquilo ainda sem palavras, um pouco antes do sentido chegando para partir de novo. A insignificância retórica aprecia conter raridades, algo a se mostrar em língua própria nos itinerários recém chegados.

Ao recordar Tales e Heráclito no princípio do movimento, a dinâmica fundadora de todas as coisas se mostra em face fluída. Nos discursos da água é possível vislumbrar um mesmo ‘logos’, diferenciado para cada região. Algo como um devir a multiplicar singularidades. No discorrer sobre seu entorno, a imprecisão explicativa busca acolher as novas versões. Uma dialética a efetivar chãos ao sabor da brisa leve.

Na concepção da lógica dos oceanos, são muitas vertentes a inundar suas vontades. As verdades da correnteza se misturam e já são outras. Os continentes surgem dispostos em seu leito. As terras estrangeiras são banhadas pelas mesmas fontes com outros nomes.

Nesse viés compreensivo a natureza viaja e se pluraliza para regressar inteira. Seus rabiscos, quase invisíveis, se assemelham ao barquinho de papel desmanchando, para ser um.

*Hélio Strassburger
Filósofo Clínico

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