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A vertigem precursora*

“Um símbolo sempre ultrapassa aquele que o usa e o faz dizer na realidade mais do que tem consciência de expressar.”
Albert Camus


Em um mundo onde a versão aceitável é a capacidade de se ajustar, é possível perceber a semelhança entre robôs, plantas e homens. As práticas ideológicas para manutenção da normal-idade estão distribuídas na invisibilidade cotidiana. No ritual bem pensado dos estádios de futebol, escolas, igrejas, hospícios se controla a produção do saber para manutenção do mundo vegetal.

Mesmo assim algo mais se oferece num esboço fora da lei. Interseção por onde se procura uma saída dessa zona de conforto que sufoca. Esse lugar difuso oferece vertigens como porto de partida aos navegantes descobridores.

O desmaio, a sensação de exclusão ou a lágrima, buscam uma entrada de ar para a singularidade desperdiçada. Como versão desclassificada aos códigos reconhecidos, o pré-sujeito assim disposto, além de estar perdido diante das novas verdades, ainda tem de lidar com o temor ao seu redor. Ao buscar alento existencial na velha aldeia, descobre que é normal classificar, para deixar tudo como está.

É comum a essas desestruturas o recurso do auto-exílio. Um lugar indefinido entre ilusão e realidade, onde parece encontrar acolhida enquanto a tempestade passa. Uma retirada para o interior pode conceder tempo hábil para aprender a linguagem dessas margens desconhecidas.

A confusão precursora pode oscilar entre visões, escutas e a sensação de perda de controle. Esse tumulto transita por vários sentidos e pode anunciar derivações a matriz conhecida. Seu aspecto estranho se anuncia num dialeto irreconhecível, fazendo referências a fenômenos que parecem ter vida própria. Não é raro a pessoa sentir isso tudo como ameaça as suas representações.

Entre a aceitação e a recusa dessa fonte de originais, surge a solução psiquiátrica: sua drogaria promete calar as vozes ameaçadoras e restabelecer a ordem das coisas (seja isso o que for!).

Ao restituir artificialmente a lágrima conhecida e o sorriso, busca tratar a nascente caótica para não mais transbordar fora do leito. Eis a coisificação da revolta originária, a partir de então, reconhecida como um tipo de doença incurável.

A pessoa assim disposta, mesmo sem nitidez sobre quem é ou onde se encontra, ainda suspeita estar no centro de um universo. Sobrevive às noites para reencontrar os dias conturbados da sua mudança. Em família, no trabalho e os amigos não lhe reconhecem mais, o que lhe resta é esse agora esquisito cercado de desconfianças.

Os dons excessivos podem assustar e causar insegurança, as novas habilidades aparecem de um momento para outro, muitas vezes incompreensíveis a própria singularidade em transformação. É provável ser a reinvenção um processo solitário, apesar das ofertas de cura para a sua loucura.

Nada mais é como era, o agora veloz se multiplica em dialetos errantes. Os estilhaços do velho espelho mostram outras verdades, repartidas em óticas multifacetadas.

A expressão dessas alegorias intermediárias, além de irreconhecíveis a primeira vista, parece querer dizer algo mais sobre os desdobramentos da estrutura que se tinha para sempre. A estética desses instantes segue incompreendida, mesmo quando eficaz para as aproximações e ajustes com a nova realidade. Como um debate sobre um texto ilegível em uma língua estranha.

Monólogos assim dispostos sugerem uma conversação entre as margens do rio passando. Essas caricaturas ainda sem rosto são tentativas para apropriar territórios inéditos. Mesmo irreconhecíveis aos velhos hábitos, dispõe vislumbres entreabertos pela versão exaltada dos excessos.

A contradição com a indústria da farmácia pode restituir a palavra maldita ao seu autor. Transgredir a dúvida, a suspeita e o preconceito para libertar os reféns do seu olhar. Permitir uma alquimia expressiva ao devir delirante, acolhendo a vertigem e o caos transformador num ambiente seguro e de interseção cuidadora.

*Hélio Strassburger
Filósofo Clínico

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