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O que podia ter sido

Sandra Veroneze
Filosofa Clinica
Porto Alegre-RS


Sempre considerei a nostalgia um tanto charmosa e são muitos os momentos em que a observo e inclusive a ela me entrego. Talvez seja um pouco influência desse nosso clima sulino, que em boa parte do ano empresta à paisagem cerração, neblina, chuva fina ou torrencial e frio, às vezes muito frio.

Tudo isso convida às comidas e bebidas quentes, ao recolhimento e as visitas ao subjetivo... Pingos escorrendo pela janela e o vapor da água saindo da cuia de chimarrão ou do café quente parecem funcionar como senhas ou portais ao universo particular de cada um, onde lembranças e sonhos encontram terreno fértil.

De alguma forma, é um convite ao exercício da imaginação, que não raras vezes resulta em produção artística: literatura, pintura, escultura, às vezes triste, às vezes feliz...
Existe uma espécie de nostalogia, porém, que me incomoda muito. É a nostalgia do que ‘podia ter sido’.

São muito comuns frases como ‘se eu tivesse estudado, hoje teria um emprego melhor’, ‘se eu não tivesse casado com ele, hoje seria uma mulher livre e independente’, ‘se eu tivesse filhos, hoje me sentiria um homem mais completo’, ‘se eu...’, ‘se eu...’, ‘se eu...’. A imagem que construo, com frases assim, é de pessoas velhas (e isso independe de idade), com o olhar vago ao longe, corpo inerte...

Incomoda porque brota de um sentimento de frustração, de limitação, e em muitas vezes da sensação de derrota. Penso que o ser humano, por excelência, não precisa carregar, como punição, sentimentos assim ao longo da vida, e nem como justificativas para não fazer diferente.

A filosofia do ‘podia ter sido’ parece carregar consigo a premissa de que não é mais possível, não tem mais como mexer na realidade, como uma sentença, uma condenação, ao ostracismo, fim de linha. E, curioso, algumas pessoas parecem viver bem neste mundo e, aliás, têm todo o direito.
O comportamento contrário também é irritante.

Para algumas pessoas, o pensamento positivo parece bastar a si mesmo. ‘Não está bom, mas vai melhorar’ é otimismo; mas ‘A vida é maravilhosa’ da boca pra fora e ‘Que porcaria de vida’ quando deita a cabeça no travesseiro todas as noites, por sua vez, pode ser reflexo de uma vida de aparências.

Metaforicamente, a nostalgia pode parecer um marco zero, numa linha vertical. Ela tanto pode levar o indivíduo a pensamentos e sentimentos no quadrante negativo, onde prevalecerá a sensação de derrota, frustração; como pode levar o indivíduo ao quadrante positivo, onde a visita ao subjetivo resultará em melhor compreensão de si, de revitalização de sonhos e também produção, não só artística.

Em essência, a nostalgia, como exercício de fantasia ou imaginação, faz prevalecer o ‘se’. O ‘se’ é o campo de todas as possibilidades, onde é possível fazer escolhas e, de certa forma, dirigir o destino. Considero válido, especialmente porque é estratégica no evitar, contornar, ou pelo menos minimizar os riscos de uma vida vivida somente no ‘podia ter sido’.

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