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A versão dos rascunhos*

“(...) As relações internas que o tornam belo para quem o vê precisam ser descobertas e, de certa forma, atribuídas pelo admirador.”
Jacob Bronowski


Um diálogo eficaz com a expressividade das transições é incapaz de se sustentar sem a participação da esteticidade. Os contornos dessa aventura pioneira se oferecem numa lingua estranha. Suas palavras são outras palavras e indicam origens diversas numa arquitetura de aspecto caótico.

Ao tentar acessar a conversação entre a subjetividade e seu entorno (agora contraditório), é possível descobrir-se um único exemplar da espécie, um projeto irrepetível e desordenado ao olhar das conferências exorbitantes ao seu redor.

Para se iniciar um processo de decifração desses discursos fora de propósito é importante qualificar a interseção entre o olhar e a escuta. Assim esse movimento interior repleto de imagens pode ser visitado com alguma eficácia, revelando circunstâncias inéditas e dons extraordinários.

É comum esses conteúdos da experiência delirante se mostrar como algo assustador, já que se trata de uma realidade desconhecida. No caso dos termos assim agendados, o dizer refere coisas inacreditáveis. Suas tentativas de descrever o que vê e sente, raras vezes encontra reciprocidade na ciência normal.

Ao visar assim descrito o fenômeno da loucura parece ser a tentativa de compartilhar eventos numa semiose ainda sem tradução. Seus incríveis episódios contém feitos irreconhecíveis ao passado recente.

Em um sujeito fora de foco podem ser verdades camufladas numa epistemologia avassaladora. Embora suas anterioridades continuem a existir, elas não se reconhecem mais na mesma estória. Suas aberturas vão sendo redesenhadas numa pintura até então desconsiderada.

As novíssimas expressões costumam surgir em contextos inesperados. Contraditórias ao mundo normal, valorizam uma retórica avessa ao uso comum. Nalgum ponto entre o traço atual e o que busca superar, a lógica dos excessos aparece em linguagem marginal e desfocada. Esses instantes de crise da transição pessoal costumam ser contidos a golpes pela farmácia alienista.

A palavra da pessoa assim descrita é desvalorizada em detrimento de outro saber, a partir de agora irreconhecível. Sua confusão se agiganta na relação com o saber especialista. Esse a institui como algum tipo conhecido de doença para depois convertê-la. Assim as possibilidades contidas nesse rascunho são desprezadas e reconduzidas ao seu lugar de origem. Aí se tem a matriz das tipologias incuráveis.

Ao vislumbrar uma interseção entre semelhanças e diferenças, o mundo estabelecido balança e tenta conter o avanço das incertezas. De súbito aparece um agora estranho, num sujeito em processo de tornar-se, onde seus rascunhos apontam um amanhã inesperado.

Em uma rua onde perduram as ilusões, a realidade que passa corre riscos de permanecer. Ao inspecionar a estrutura dos acordos, aproximações e distanciamentos, o teor das expressividades parece anunciar o território virgem dentro de cada um.

Os desdobramentos dessa novidade são preliminares ao instante envolvido com os outros de si mesmo. Sua presença pode significar mudança, alegria, tristeza, até se aprender o dialeto desses personagens na mesma estrutura. Como vidas a encontrar um sentido até então impensável.

A presença da imaginação delirante atiça um vocabulário para dialogar com os aspectos visíveis e invisíveis da realidade. Esse lugar nenhum de todo lugar, oferece vislumbres sobre o aparecimento fugaz das formas inadequadas.

Ao viver entremeios de ficção a pessoa atualiza seu discurso. A extraordinária singularidade refaz seu mapa interno e tenta compartilhá-lo numa estética dos rascunhos. Nêle as vozes sussurram e as visões sugerem outras possibilidades ao cotidiano em desconstrução.

*Hélio Strassburger
Filósofo Clínico

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