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ALMA GÊMEA

Ildo Meyer
Médico, Filósofo Clínico, Escritor
Porto Alegre/RS


Parecia um dia como outro qualquer, mas não foi. Modificou minha vida. Acordei às oito horas, tomei café e sai para praticar a rotineira corrida matinal. Já havia percorrido uma boa distância quando percebi alguém se aproximando. Olhei para trás e vi um cão correndo para me alcançar.

Era um boxer branco, magro, sem coleira e com algumas marcas no pelo. Não identifiquei se eram feridas cicatrizadas, micoses ou simplesmente marcas de nascença. Não importa. O cão começou a me acompanhar. Não deu um latido, sequer olhou para mim. Simplesmente quis correr ao meu lado.

Achei engraçado e imaginei que logo adiante ele iria cansar e me abandonar. Não foi o que aconteceu. Depois de cinco minutos juntos, percebi que estávamos em perfeita sintonia. Quando eu aumentava a velocidade, ele correspondia. Quando parava em algum sinal de trânsito, o cão ficava ao meu lado.

Era como se houvesse sido treinado desde pequeno para correr comigo e fossemos velhos companheiros. Chamava atenção nossa desenvoltura, parceria, sincronia e felicidade. Não sei se cabe a expressão, mas reconheci nele, minha alma gêmea corredora. Já havia experimentado correr com outros cães, porém nada se comparava à cumplicidade instantânea que desenvolvemos.

Depois de quarenta minutos de corrida, chegamos a meu destino. Precisava tomar um banho e sair para trabalhar. Adorei ter encontrado aquele cão e passearmos juntos. Gostaria de correr acompanhado dele todos os dias. Como? Infelizmente tive que me abstrair do prazer daquele momento e começar a pensar em uma maneira de adoção.

Moro em um apartamento e quase nunca estou em casa.. Deixar um cão daquele porte e vitalidade preso à minha espera, talvez fosse egoísmo demasiado. Considerei também o trabalho, a sujeira e a despesa com a manutenção de um animal dentro de quatro paredes. Estava entre dois extremos, minha alma corredora pedindo pra ficar com sua metade e meu cérebro racional empilhando impedimentos.

Não consegui entrar no prédio e abandonar o cão. Sentei no meio fio da calçada e ao mesmo tempo em que me enchia de prazer vê-lo sentado ao meu lado, sem nada pedir, apenas desfrutando da companhia, angustiava-me porque uma voz interior muito chata dizia que eu estava procurando sarna para me coçar, no sentido mais puro e literal.

A estas alturas, já estava trinta minutos atrasado para o trabalho. Acariciei meu “novo” amigo, levantei-me e fui buscar uma tigela com água. O cão veio comigo mas não pode entrar. Edifícios modernos não permitem que animais circulem nas áreas coletivas. Fiquei com medo de entrar e deixá-lo do lado de fora do portão. Na minha volta, poderia não mais estar ali. Pensei em amarrá-lo por uns instantes, mas nem corda tinha naquele momento.

Apostei na sorte. Entrei, o cão ficou me olhando e eu olhando para ele. Afastei-me andando de costas para não perdê-lo de vista. Rapidamente voltei com a água que foi sorvida como um néctar. Estava atrasado, precisava trabalhar, já havia telefonado duas vezes avisando do imprevisto. Solicitei ao porteiro que vigiasse o cão enquanto tomava um rápido banho e trocava de roupa. Neste meio tempo alguma idéia haveria de surgir.

Quem mandou brincar com a sorte? Na minha volta o cão havia partido, o porteiro nada sabia e eu fiquei sem minha alma gêmea corredora. Atrapalhado com a situação, peguei o carro, dei várias voltas pelo bairro, mas ele havia sumido. Na esperança de encontrá-lo, tenho corrido todos os dias no mesmo trajeto, mas ele não mais apareceu. Restaram algumas perguntas, ou respostas, tanto faz.

Quantas vezes em nossas vidas identificamos emocionalmente nossas almas gêmeas, mas não conseguimos deixar fluir e as perdemos porque precisamos trabalhar, estudar, pensar, racionalizar, conversar, conhecer melhor?

Quantas vezes a alma gêmea está ao nosso lado, mas não a reconhecemos porque não temos tempo de olhar para ela e deixar que se aproxime?

E se o cão falasse? Se dissesse que era um cão abandonado, acostumado a dormir ao relento, viciado em drogas e suas cicatrizes eram resultado de brigas entre gangues, seu passado o condenaria ou ainda assim o reconheceria como minha alma gêmea corredora?

E se o cão me contasse que largou tudo o que estava fazendo quando me viu correr porque reconheceu que éramos as duas rodas da mesma bicicleta, e queria ficar correndo para sempre ao meu lado, teria eu deixado nosso futuro nas mãos da sorte?

Não pretendo aprofundar o assunto almas gêmeas, muito menos quando se trata de um cão corredor. O fato é que este episódio, feliz e ao mesmo tempo triste, serviu claramente para me acordar acerca de encontros e relacionamentos que marcam nossas vidas e podem ser perdidos devido a preconceitos e paredes que vamos construindo. Ao invés de sentirmos e deixarmos fluir, ficamos presos aos aspectos mundanos do trabalho, família, sociedade, reduzindo descobertas mútuas, impedindo nossa capacidade de despojamento e impossibilitando-nos de ir adiante.

Este cão apareceu em minha vida para me libertar, depois foi embora. Cumpriu sua missão. Vai ver que almas gêmeas servem pra isso. Quem sabe quando nos encontrarmos de novo, transcendemos e providenciamos outro desfecho. Tomara!

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