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A diferença singular estrangeira e o espaço entre nós e os outros

Josy Panão
Filosofa Clínica
São Paulo/SP


(...) A cada peça de roupa e a cada objeto meu que organizava, a sensação era de que, por mais identitárias que essas coisas fossem, eu me despojava de uma zona de conforto, de um lugar onde minha identidade exercia seu legítimo direito de existir.

Essa sensação era algo difuso num ambiente onde era grande o impacto de viver um projeto novo e completamente diferente de tudo que já havia vivido antes. E por isso mesmo, perceber o que acontecia por dentro só podia realmente se dar num outro momento: num momento em que a conexão com essa nova experiência que se abria para mim encontrasse um plano de fundo totalmente diferente.

Partia levando minhas malas e todas as minhas expectativas. Seguia rumo ao desconhecido, ao encontro como o outro; partia com o corpo todo preenchido por uma sensação inexplicável: uma sensação intensa, frágil, delicada, desnorteante, vital.

Viver esse momento de preparação tinha um quê de simbólico, pois, quase sem perceber, sentia (porque não entendia, não sabia e não saberei jamais explicar) que um panorama de diferença (aquela diferença pura, por ela mesma, sem subterfúgios de paradigmas identitários – princípios de identidade; contradição; síntese, etc...) se mostraria e exigiria que esta experiência fosse vivida. Eu estava inocentemente preparada para embarcar nesta viagem que me levaria para viver o conceito de diferença nela mesma.

(...) O adeus e o momento da partida – deixar o estável e habitar o instável, o campo vasto das possibilidades (desconhecidas?)
Havia alvoroço, medo, alegria, êxtase, melancolia, expectativas, saudades, esses e outros sentimentos, que se misturavam à sensação da diferença que me invadia, antes mesmo de deixar o lugar onde passei a vida toda, com todos seus planos fixos, estáveis e confortáveis.

Seria difícil me desgarrar dos amigos, da família, dos laços herdados de minha história pessoal, mas iria de qualquer maneira, isso era certo. Não havia outra coisa a ser vencida a não ser a paura de se desprender do que me fazia igual e de me encontrar com o diferente.


(...) Embarquei e, enfim, deixei minha zona de conforto para trás. Literalmente, não havia mais chão para voltar. Inebriada pela sensação que me tomava desde minha preparação para a partida, também não tinha vontade de regressar; queria antes viver a experiência de um lugar entre mim e os outros: o espaço da diferença.
Escuro, frio, chuva e eu estava no ar, completamente em suspensão e disposta a viver a experiência de estar no espaço entre, onde não conseguiria mais me identificar, ou me reconhecer como antes.

A chegada num lugar quase completamente diferente, quase completamente igual:
Chegar na Cidade do México foi uma sensação extremamente forte. Me senti aberta, frágil, vulnerável, sem nenhuma referência.
Estava completamente entregue a um fluxo que me tomava e me fazia flutuar sobre algo que realmente desconhecia. Minha identidade fora deixada para trás, já não mais a encontrava da forma como estava acostumada no Brasil.

Não tinha medo, mas sentia que, desde meus primeiros momentos nesta cidade, estava encontrando alguns limites. Alguns até que jamais poderia reconhecer se estivesse envolta pelas seduções das zonas de conforto.
Por mais óbvio que pudesse parecer, o primeiro limite foi o idioma espanhol e sua melodia totalmente diferente, que faz com que palavras iguais nas duas línguas (português e espanhol) se tornem irreconhecíveis.

Afastar-se de sua língua materna é algo que te coloca completamente em xeque; você se destitui de uma tal maneira do que te localiza num espaço e tempo que tudo o que já se fabulou sobre o conceito de desterritorialização ganha proporções muito mais concretas e extremamente “claras e distintas” (o velho e bom Descartes!).
Cheguei num país que nunca antes havia visitado e desconhecia quase por completo seu idioma, mas pensava que, pelas similaridades entre o português e o espanhol, estaria apta a passar confortavelmente por essas duas realidades (que são distintas e não adianta negar!). Ledo e bom engano, pois senti mais vivamente a deriva de estar num mar de diferenças disfarçadas por similitudes.

Ver e compreender esses limites não foi fácil e, sim, uma experiência muito forte. Me senti muitas vezes desnorteada. Fui forte diante de alguns limites, desabei diante de outros, troquei os pés pelas mãos, fui ao extremo daquilo que me identificava dentro de minha zona de conforto, amparo e refúgio afetivo.
Diante destas situações e entre um limite e outro, chorei; sorri; fiquei eufórica; me decepcionei; me arrependi; gritei; calei; falei, disse até coisas que não sabia que conseguiria algum dia dizer. Me senti encorajada a elaborar tudo simultaneamente na medida em que as coisas aconteciam, pois o contexto de referências prévias deixava de ser um solo firme para meus pés. Encontrava força no silêncio. Fazia, e tenho feito, tudo para não deixar vãos, tudo para não deixar as coisa escaparem de minhas mãos.

Entre o que eu trazia e sabia sobre mim e aquilo que passava a assimilar do outro, encontrei um espaço que abriga uma diferença singular, uma diferença nela mesma. Na medida em que o eu e o outro assumem posições cambiantes, vou me refazendo a cada instante. Sinto dores latejantes pelo crescimento que essa experiência tem me proporcionado.
Pelos olhos indígenas rasgados que não tenho, pela primeira vez me vi diferente, me vi realmente estrangeira, não só porque não sou do México, mas porque consegui uma fresta para enxergar que as diferenças se expandem para além do que os olhos podem ver. Caiu-me as lentes da identidade e fui capaz de pensar que a diferença elabora e permite muito mais criar caminhos para as possibilidades que nos cercam.

Isso pode em alguns momentos assustar, mas que bom que assim é, porque provoca choque, provoca ação, reação e, sobretudo, movimento, que nos coloca em pé de igualdade (ou diferença!) com a vida. Acho que me redescobri, que me re-inventei e que me re-articulei entre o espaço que tinha no Brasil e o espaço que tenho no México.

O trabalho com a curadoria – o espaço entre nós e os outros:
Vim ao México para acompanhar o processo de montagem da exposição Lucas Bambozzi – o espaço entre nós e os outros. Eu tinha como missão lançar na rede, através do blog da curadoria, fotos, vídeos, informações, depoimentos, textos, enfim, todo o material disponível sobre o andamento de cada detalhe, sempre através da minúcia e da tentativa de contato com o público.

Quando Christine Mello, a curadora da mostra que reúne 20 obras do artista Lucas Bambozzi, estabelece suas articulações, ela elabora também uma curadoria de processo, que pretende ampliar o espaço de recepção dos trabalhos, levando a cabo oficinas, palestras, conferências, o desvelamento de todas as etapas da montagem e a escuta sensível do espaço expositivo, do espaço de troca com o outro.

Desnudar esse processo, estar afinada com ele, foi o modo mais evidente de me colocar em contato com as diferenças culturais dentro do âmbito do trabalho e das relações que estabelecemos no cotidiano. Precisei me adequar ao ritmo local, me colocar em situações tensas com leveza, isso fez com que a visão da diferença se desse ainda de maneira mais intensa.

Já ambientada na diferença, carregava também uma dimensão maior do que o eu e sentia no corpo essa passagem: a transformação do eu em nós. E estar ali diante da montagem dos trabalhos de Lucas, que, através de sua poética, busca colocar em evidência um espaço entre (seja entre ele como artista e o público, seja entre diferentes culturas, seja entre diferentes contextos, seja como for...), fazia com que, embora sutis, as nuances desses enlaces, que acontecem nos espaços de meio, elaborassem de forma orgânica o contato com o outro, que agora deixa de ser um outro universal e passa a respeitar as diferenças singulares e estrangeiras de cada um.

Senti, pela primeira vez, que fazia parte de uma coletividade chamada nós (que representa brasileiros) e que estava em contato com uma coletividade chamada outros (que representa mexicanos). Esse espaço entre uma coisa e outra se mostrou cheio de diferenças, que não se podem aclarar como na velha forma tradicional, através de submissões racionais e explicativas, mas, sim, pela real dimensão do vivido.

Participar da montagem e ajustes finais dos trabalhos de Lucas expostos no Laboratório Arte Alameda, na Cidade do México, me permitiu perceber essa potência cambiante que acontece no espaço entre, pois ora o nós podia se tornar o outro, e ora o outro podia se tornar nós.

Poder registrar essas nuances de um processo expositivo através de seus registros, sejam eles imagéticos ou meramente relatados, como agora, talvez possa tornar sensível a experiência de estar diante dessa poética de expansão da diferença nela mesma, que, portanto, não exige muita coisa além de vivenciá-la.

A curadoria de processo permitiu que os trabalhos do Lucas não estivessem somente no espaço físico do museu, e tão pouco os encarcerou em produtos prontos; ela permitiu o desnudamento de processos sutis e de relações cotidianas, abriu a possibilidade para sensibilizar a diferença através do espaço entre nós e os outros.

E esse tem sido o meu trabalho por aqui: participar ativamente desse processo poético e compartilhar impressões e registros através da rede. O processo está aberto para a diferença singular estrangeira através do espaço entre nós e os outros.

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