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Uma resenha*

Strassburger, Hélio. Editora E-papers. Rio de Janeiro/RJ. 2009. Filosofia Clínica, diálogos com a lógica dos excessos

*Por prof. Dr. José Mauricio de Carvalho
Chefe do Departamento de Filosofia da UFSJ


O livro de Hélio Strassburger apresenta um olhar sobre o fenômeno da loucura nascido de sua experiência de trabalho em clínicas psiquiátricas. Não se trata propriamente de uma descrição detalhada do fenômeno da loucura, mas de um enquadramento poético que baliza uma futura descrição. Vamos esclarecer: o método usado é o fenomenológico, mas o procedimento metodológico para tratar a linguagem delirante é a poética. Para o autor tal linguagem revela mais adequadamente os meandros da loucura.

A linguagem delirante, ele lembra, não é lógico-discursiva. Os delírios e alucinações traduzem um modo singular de expressão, própria de um mundo desestruturado. Afirma: “No saber desajustado dos delírios, algo se anuncia entrevista de tradução” (p. 7). A chamada loucura corresponde à desestruturação de pensamento e é examinada na Filosofia Clínica no tópico dez da EP conhecido por estruturação de pensamento. Loucura representa um nível tal de desestruturação que o filósofo clínico atende o caso a pedido da família e paralelamente ao atendimento médico. O livro traz a experiência do autor no atendimento a pacientes internados e é, simultaneamente, uma crítica a um tipo de atendimento médico isolado de outros profissionais. A crítica alcança toda forma de atendimento terapêutico pouco atento à singularidade existencial do louco.

Hélio Strassburger encontra algum encanto no que descreve como sendo a língua marginal que expressa o mundo das ideias delirantes. Este mundo é um território novo e sem vocabulário conhecido “que esparrama vestígios de multidão” (p. 8). Ao principiar a descrição fenomenológica emprega o que denomina “lógica das diferenças” (p. 8), alternativa às classificações feitas “com base no DSM-IV (Manual Psiquiátrico Americano)” (p. 9). Tendo como pressuposto a compreensão fenomenológica de que cada pessoa é um mundo singular, Hélio Strassburger defende que cada um pode se expressar de um modo próprio, inclusive “como incompletude” (p. 12). Ele esclarece que as lógicas delirantes demandam uma análise que fuja aos procedimentos tradicionais, se quiser trazer algo de novo sobre este assunto.

A linguagem da diferença é, na avaliação do autor, uma tentativa do louco se expressar e de se deixar conhecer, mas apenas a quem consegue compreendê-lo. Afirma: “Para além desse jogo de cena, o louco escolhe quem vai merecer sua tradução das coisas que vê, escuta e sente” (p. 13). A melhor forma de compreender tal mundo é mergulhar no dicionário íntimo de cada um que “pode oferecer algum esboço para fora de si” (p. 14). A lógica da diferença é, portanto, estratégia de inclusão, pois “ao sujeito chancelado com alguma patologia, é comum a segregação do seu meio social” (p. 16). De alguma forma a chancela de louco contribui para a sua segregação e preconceitos de parte da sociedade.

O livro traz também uma crítica ao chamado bio-poder. Os psicólogos de inspiração fenomenológica rejeitam o uso de fármacos para enfrentar o vazio existencial, a insegurança, sentimento de tragédia e as dores da existência que nos acompanham a todos. As dores da alma não são para serem tratadas com medicamentos. Hélio Strassburger estende tal crítica ao tratamento de parte dos denominados loucos, pois afirma que os fármacos e seus derivados afetam “a expressividade do louco deslizando para a reincidência daquilo que finge evitar” (p. 18). Logo adiante explica melhor o que quer dizer afirmando que algumas vezes a medicação pode favorecer a expressividade. Ele diz: “A prática médica reconhecida, sem saber, favorece a euforia criativa ao alargar horizontes improváveis da pessoa com suas drogas” (p. 22). Ao criticar o uso dos fármacos como controle genérico da chamada loucura, o autor não tem a ilusão de que será fácil o contato com a pessoa desestruturada. Ele diz que “nem sempre é possível conversar com a subjetividade delirante. Seus rituais de intimidade costumam estar protegidos aos acessos da versão normal” (p. 23). É claro que a crítica ao uso de medicamento não se estende a todo tipo de transtorno genericamente denominado loucura, mas nenhuma redução no uso de medicamentos agradaria a indústria farmacêutica, avalia: “É claro que a indústria farmacêutica não aprovaria essa ideia. Algo relacionado com lucros na venda de suas drogas” (p. 101). Assim, o modelo de tratar genericamente os loucos com fármacos se generaliza e amplia.

A descrição da loucura mostra que a aparente incompreensão do fenômeno vem da tentativa de classificá-lo com parâmetros lógicos. A linguagem simbólica usada pelo louco permanece incompreensível para tal linguagem. Ao autor parece inadequado continuar a tratar a loucura com procedimentos tradicionais dos hospitais psiquiátricos. Falham os procedimentos que “estruturam verdades, rituais de contenção e legalizam tratamentos na presunção de sanar desvios” (p. 33). O que mais importa é a qualidade da interseção que o terapeuta estabelece com o chamado louco. Se for bem sucedido conseguirá entender melhor o seu mundo e ajudá-lo “a suportar a travessia entre fenômenos de aparente sem nexo” (p. 37). Neste aspecto, o desafio é compreendê-lo e não explicar ou interpretar seus delírios. Ao compreender o outro, o filósofo clínico vive um papel existencial próprio do curador. Como tal ele é um companheiro de destino e divide com o partilhante a condição humana.

A expressividade delirante é um desvio do modo como as pessoas compartilham sua visão de mundo. Este fato decorre da trajetória singular do mundo delirante, seu “ensimesmar-se está em desacordo com o mundo ao seu redor” (p. 46). As formas que o louco percebe são inéditas estratégias de contato e é difícil identificar os contextos em que seus sinais se expressam, mas é para lá que o clínico precisa se dirigir, para o lugar “onde a pessoa desloca-se em seu singular desassossego” (p. 47).

O delírio é uma forma de expressividade de um mundo singular. A maneira como este mundo é percebido tem aspectos fantásticos e camuflados, algumas vezes as coisas ao redor parecem mais brilhantes e intensas que para as demais pessoas ou então ocorre o oposto, o mundo parece não ter cor nem a vida que os normais relatam. A tarefa do clínico é “desvendar ou ocultar o milagre da singularidade, nem sempre expresso na forma da lógica formal” (p. 52). Ninguém será compreendido se não forem desvendados seus sinais, sua linguagem, seus símbolos. Para esta tarefa pouco vale fazer os diagnósticos conforme o DSM –IV, pois o diagnóstico é na grande maioria das vezes uma forma de reduzir o sujeito à lógica social. Pior é se a descrição ali contida for entendida como um padrão uniforme que padroniza o fenômeno descrito como loucura. O sujeito delirante desconfia desta lógica, pois nela “nada lhe parece grande o suficiente para dizer dos seus amores, saudades, alegrias ou tristezas. Tudo parece fora da órbita normal das coisas” (p. 56). A expressividade singular do louco se manifesta em atividades sociais dos hospitais psiquiátricos como “o baile semanal, a rádio comunitária, o teatro, as igrejas, oficinas de desenho, pintura e criação, também a dança e o fenômeno carnaval” (p. 57). Todos estes eventos ajudam a pessoa a se expressar e mostrar aos normais sua realidade.

A lógica usada no diagnóstico psiquiátrico é denominada de lógica da exclusão. Parece ao autor que ela é um procedimento usado por quem não consegue lidar com os paradoxos da loucura. A linguagem da loucura tem uma organização própria. Aos olhos da forma tradicional de pensar “os sonhos e realidade se confundem ao transfigurar evidências em lógicas inimagináveis” (p. 64). O delírio é, para o filósofo clínico, espaço de expressão das ideias complexas, o que faz com que muitas vezes pareçam hermeticamente fechados e incompreensíveis. Sonhos relatados podem ajudar na compreensão dos delírios, mas isto não é uma regra. O que a lógica da diferença ou prática clínica pretendida espera é “desarticular a sensação da insegurança e medo, proporcionados pela descoberta das novas geografias” (p. 73). O filósofo clínico está aberto a novas abordagens da loucura. Ele buscará compreender o que se passa no mundo da pessoa, mesmo sabendo que “é incomum a busca para alguma tradução da linguagem da loucura” (p. 76) e que “nem sempre é possível realizar alguma forma de conversação com a subjetividade delirante” (p. 77). Fechada em si, a subjetividade delirante vive contradições profundas ao procurar desconstruir os personagens e histórias que cria. Assim, a epistemologia, que na Filosofia Clínica é o modo como se conhece o mundo pode ser “um refúgio, remédio ou veneno” (p. 85) para o louco, conforme a pessoa consiga lidar ou não com suas idéias e percepções.

O autor usa uma estratégia investigativa consagrada por Sigmund Freud para entender o fenômeno psíquico, isto é, reconhece que o mito consegue expressar lógicas improváveis, ele é “ponto de encontro dos discursos da insensatez. Diálogos sem palavras acolhem a exceção no devir dos encontros” (p. 92), diz o autor. A expressividade incomum do louco é uma forma de indagação da loucura a outras formas de viver mais conformadas e ajustadas, mas frequentemente incongruentes e sofredoras. Para acompanhar a lógica da loucura é preciso o talento do detetive e através da interseção positiva e “na reciprocidade dos encontros, traçar os roteiros para evidenciar aldeias antes inatingíveis” (p. 102).

Isto significa que o autor nutre a confiança de penetrar e decodificar a linguagem delirante, por mais difícil que seja a tarefa. “As dinâmicas de acolhimento e atenção com a vida desdobram-se no mundo como representação da pessoa” (p. 106). Assim se esclarece a prática do Filósofo Clínico, cujo domínio da técnica lhe propicia “compartilhar silêncios e ressonâncias, sem descuidar das perspectivas do outro” (p. 107).

A Filosofia Clínica criada por Lúcio Packter é um instrumento alternativo à prática psiquiátrica, quando estas de resumem ao diagnóstico e uso dos medicamentos. A técnica ajuda aqueles que não se sentem compreendidos pela família, amigos e colegas, e são internados por não se enquadrarem bem no ambiente social. Sentirem-se acolhidos e respeitados na sua singularidade existencial parece básico ao nosso autor. A internação algumas vezes é desejada pela própria pessoa, mas a internação só se justifica em situações muito especiais, pois “é improvável que a verdade delirante se estruture em um lugar onde as experiências concretas não exerçam influência” (p. 120). Em outras palavras, se os desdobramentos existenciais não forem vividos e compreendidos “as rotas de fuga e esconderijos que possuem autogenia imprecisa e altíssima velocidade” (p. 121), seriam ainda mais usadas. A loucura fechada em si mesma é um fenômeno truncado que se esconde mais quando não encontra formas de expressão.

Este livro de Hélio Strassburger é a porta de entrada da Filosofia Clínica no mundo das consciências desestruturadas. Trata-se, portanto, de mudança no movimento clínico inicialmente voltado para o tratamento de pessoas que não tinham tal desestruturação. O trabalho descrito abre as portas para as pesquisas que os filósofos clínicos deverão fazer com pessoas diferentes da consciência comum. Estas pessoas continuam a ser um sujeito humano completo, um mundo absolutamente singular que o filósofo clínico passa a acompanhar e procurará compreender. O que o clínico pesquisará é o tamanho de desorganização da estrutura de pensamento, saber quais os nexos existentes entre os tópicos, como eles se formaram, que tipo de autogenia encontramos, enfim, quais conflitos aparecem na malha intelectiva do partilhante.

Os nomes: louco, loucura e normais não são os melhores para descrever a desestruturação ou estruturação de pensamento segundo a Filosofia Clínica, mas foram preservados pelo uso comum e para tornar o texto mais claro.

José Mauricio de Carvalho
Departamento de Filosofia da UFSJ
Mauricio@ufsj.edu.br

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