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Um absurdo poder sobre si mesma*


Ela tem dedos finos e longos e toca as pessoas de forma diferente, qual timbre tenham. A pianista morena seduz com o talento que tem e o usa a seu favor, sobre as melodias dos mestres que interpreta com a alma.

Toca as teclas de geléia colorida, as frutas transformadas em vitrificados translúcidos ou opacos – a nobreza está na transparência. Comeria o mundo, como Simone de Beauvoir. Suas heroínas são Ana de Assis, Xica da Silva, a Dama das Camélias, Dona Flor, Pagu, Clarice, mulheres transgressoras, mulheres de poder, quando o poder sobre si mesmas já era um absurdo.

A luta contra a exigência do padrão que exclui e fecha a liberdade a chance de cada um ser o que é para ser o modelo convencionado por tal sociedade humana. Puxa, o que é isso, um ventilador de teto?

A pianista queria ser admirada pelo que era, e não pelo que tinha, posto que não tinha, ou tinha – apenas a história. E histórias bonitas ou tristes para se contar e escrever era preciso. E animadinha decidiu tocar sua vida em tons graves, um contralto sonoro e puro. Pura e sensual como Mariah Carey. Interseção até por demais. O excesso dá problema?

A neurolingüística manda no corpo; ó, mente, obedeça! As receitas estão prontas. Feche a boca, segure as mãos, encolha a barriga. Muito obrigada. Seja feliz. Mas afinal, o que você realmente quer? Ou não quer, apenas vive? Liberdade para ser. Pipocas com doce de leite, geléia de pimenta com sementes e tudo.

Aí você pára, olha para os resultados da somatização e pensa: “gente, o que foi que eu fiz pra fazer brotar tudo isso?” Estresse de férias, como detectam os colegas, coisa quase absurda. Diria que os sintomas quiseram aparecer todos agora; segurei-os para cumprir meu papel profissional. Na definição de Paulo Coelho, a vida é a busca do equilíbrio entre pão e vinho, “um representa o que se impõe, o outro o que se adapta”. Devo pensar melhor nos pães.

Vejo cada parte delicada que está sofrendo com os maus tratos a que me impus por conta de um termo, “compromisso”: a pele, a garganta, o ovário, o estômago, todos pontos fortes de energia que diminuíram sua pulsação devido ao excesso de um lindo final de ano e às expectativas de um ano movimentado que vem! Volto aos trabalhos deixados por uma semana – uma falta, pra mim: se procuras um workaholic, é o espécime perfeito que te escreve - : a resenha do Manual de saúde mental sem rascunhos (cheguei de BH procurando atônita os papéis de anotação e lembrei, ao me concentrar, que escrevia o texto direto do livro). Puxa, é uma obra muito importante e objetiva para quem estuda saúde mental!

Iniciamos com várias possibilidades – afora a “lenda urbana” de que o ano brasileiro começa após o carnaval... para quem? Um susto que o governo prega, bem em cima das festas, é vir cobrar IPVA, IPTU, avisar sobre ISSQN e as novas do IRPF ou IRPJ quando está tanta gente convergindo pras origens, pra si mesmo. Vá lá, o homem também pode ser muito bem entendido através da dualidade Débito/Crédito.

Cheguei do estado do Rio de Janeiro à noite, dei uma bela espiada no vale do Paraíba do Sul, nas serras da Zona da Mata afinal, eu sou o navegador do rally de Uno, mapa em punho direto; intuição tem que funcionar – embora desta vez não estivesse lá essas coisas, erramos algumas entradas, faltaram umas placas de sinalização, mas deu tudo certo: 2.485 km, uma beleza. Quatro dias na estrada pra quatro na praia (bem que eu prefiro a menor distância de São Paulo!).

As estradas seguindo o Paraíba do Sul, o Muriaé e cruzando o Rio Pomba. Os profetas eternizados em pedra de Congonhas, na Basílica do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, sendo esta resultado de um voto religioso feito por volta de 1757. Observei tudo aquilo que pode ser um detalhe que diz algo de alguém, de uma civilização pré-existente, do século XVIII visto nas ruínas, dos resquícios de vida nas construções abandonadas, nos casarões de dois andares, sedes antes vultosas de fazenda. As locomotivas enferrujando em São João da Barra, os canaviais e os acampamentos dos sem-terra; o mar tomando prédios e asfalto em Atafona.

Vi muita coisa, tentando pressentir sentimento, pensando em como seria a cultura daquelas pessoas numa terra tão diferente da minha, porque aqui no Triângulo se tem cidades com apenas um século e pouco, diferentes até de Catalão/GO, que fica a apenas uns 110 km, fundado em 1722 e cujo museu (muito emocionante, por sinal, com a reprodução do quarto de personagens marcantes para a cidade, como a professora – o que me fez lembrar o quartinho de minha bisavó, com seus móveis e utensílios – e o escritor, além de documentos sobre os “loucos”, ali tratados como personagens pitorescos, conhecidos pelo nome, como, se não me engano, o “Zé do trem”, que, segundo as funcionárias do museu, colocava o ouvido sobre os trilhos para saber o horário do trem passar) fica na própria estação ferroviária – motivo da formação de tantas cidades por esta parte do Brasil. Em Uberlândia, somente circulam na linha restante da RFFSA os trens de carga; a lembrança que ficou no dia-a-dia foram as avenidas com canteiro central que cortam a cidade.

Estradas e pontes. Chegar mais perto das pessoas e ganhar a confiança para que seja possível vê-las; estamos em casulos.

*Vânia Dantas
Filósofa Clínica
Uberlândia/MG

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