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Os sonhos*
Chegou de mansinho... Sentou-se ao meu lado. O dia era frio e senti o calor de sua mão que esbarrou quase sem querer na minha. Gelo no estômago. Emoções confusas.

Balanço de cabeça e pés no chão. Onde estaria eu com minha cabeça? Como um estranho que chegava em uma manhã de inverno poderia fazer adiantar a germinação das flores de uma primavera tão distante? Será que William Shakespeare teria razão quando escreveu: “Lutar pelo amor é bom, mas alcançá-lo sem luta é melhor”?

Por um rápido instante pensei em todas as estações nas quais busquei o meu príncipe encantado. Esperava que ele chegasse em um momento especial. Talvez na minha festa de aniversário de quinze anos. Não chegou. Talvez que ele viesse no baile de formatura de minha Faculdade de Filosofia. Não veio. Lembro-me muito bem daquela noite de formatura: tive que dormir frustrada e desiludida ao lado de Platão, Aristóteles e toda a milícia filosófica...

Impossível! De fato a manhã estava fria, mas aquele frio que me causava arrepios já era demais! Para falar a verdade, não esperava que o meu príncipe chegasse em uma manhã de inverno, mas sim em uma tarde de primavera. E justamente naquele banquinho velho da praça ele teimava em aparecer.

No espelhinho que sempre carrego em minha bolsa olhei para o banquinho e olhei para meu rosto. Olhei e pensei: “Me lembro de quando este banquinho foi colocado na praça. Era criança e muitas vezes tive belos sonhos aqui, neste mesmo lugar”. Não quero poetizar meu passado. De poesia morre-se de fome, e eu tenho que trabalhar!

Há poucos metros daquele banquinho da praça está o meu local de trabalho. Não! Não sou professora de Filosofia. Tive que buscar nos sonhos que vendo minha sobrevivência. Sonhos de padaria, claro. Pois os sonhos interiores, nem o meu eu consegui alcançar ainda. E falemos a verdade: sonhos não se vendem, se conquistam.

Pensei em deixar um cartão do meu local de trabalho ao lado daquele senhor com ares de primavera. Seria muita pretensão minha.. Melhor não... Talvez se lhe perguntasse o número de seu telefone... Não... Muito oferecimento de minha parte...

- Já vai?
- Sim... Tenho que vender meus sonhos.

Resposta mais boba a minha. Vender meus sonhos! Poderia ter esticado a conversa... Peguei minha bolsa e meus sonhos que tinha que vender e fui. Nem olhei para trás. Não tive coragem de despedir-me do meu sonho que ficava naquele banco frio.

- Um sonho por favor!
- Ah sim! Só um?
- Sim. Apenas um.
- Vai comer aqui ou irá levar?
- Levarei. Por favor, embrulhe pra viagem.

Peguei o sonho mais bonito. Embrulhei com todo cuidado. Nem cobraria, seria um presente. Um doce presente. Naquele sonho estavam impressos todos os meus sonhos de uma vida de esperas.

Abriu a carteira marrom, retirou o dinheiro já trocado e pagou por aquele sonho. Pensei em não cobrar. Mas meu oficio era vender sonhos. E foi assim que ele saiu com o meu sonho em suas mãos que um dia tocaram as minhas. Hoje vivo daquele sonho que se foi embora com aquela manhã de inverno...

*Pe. Flávio Sobreiro
Poeta, Filósofo Clínico
Cambuí/MG

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