Pular para o conteúdo principal
A riqueza contida na história de vida*

A nossa capacidade de reviver momentos e fatos ocorridos no decorrer da vida pode ser uma experiência intensa e reveladora.

Muitas vezes uma fotografia, um aroma, uma flor, uma música nos remetem à vivências intensas que de alguma forma estão registradas na nossa existência.

A hitória de vida diz respeito à tudo aquilo que a pessoa vivenciou, sentiu, pensou, intuiu. São registros que nos acompanham no decorrer da caminhada existencial que é unica, singular a cada pessoa, mas também influenciada por questões culturais, religiosas, sociais entre tantas outras que se encarregaram da padronização de certas ações ou comportamentos.

Algumas pessoas não se interessam evitam ou ficam desconfortáveis ao visitar sua história. Outras encontram aí um rico manancial de respostas para questões atuais, tomada de decisões e alívio para certas dores do corpo e da alma.

A visita à própria história pode ocorrer da várias formas. Algumas pessoas ao acessá-la fazem divisões, por exemplo, por eventos: quando ganhei a primeira bicicleta, quando comecei a namorar, os diferentes empregos que tive, quando comprei meu Fusca novinho, quando mudei para a nova casa, casamento, formatura, etc. Há ainda as que tem um olhar cronológico e fazem essas partições por datas, em 1954, 1976 ... Outras acessam sua história por eventos traumáticos ou de dor: quando quebrei a perna, quando minha mãe faleceu, quando fiz uma cirurgia.

O acesso também ocorre de forma sensorial, por exemplo: ao sentir o aroma do café a pessoa revive o tempo em que frequentava a casa da avó, as conversas ao redor do fogão, o calor do fogo, o estalido da madeira, o chimarrão. Outras pessoas ao ver o cair de uma fina chuva de verão são remetidas às divertidas pescarias de lambari na sanga que cortava a velha estância. Outras ao ouvir uma música ou programa viajam ao passado e relembram o som chiado do velho rádio que trazia as notícias do mundo e o entretenimento.

Também é possível buscar dados externos que a pessoa internalizou na forma de uma emoção como por exemplo, conquistas históricas do Internacional de Falcão ou do Grêmio de Renato Portaluppi. Cada uma vai guardar, registrar para si aquilo que lhe fizer mais sentido, tiver mais relevância e ao revisitar um fato vivem a mesma emoção como se estivessem naquele exato momento do passado.

Criada no final dos anos 80 , em Porto Alegre/RS, pelo Filósofo gaúcho Lúcio Packter, a Filosofia Clínica, baseada na Filosofia acadêmica, usa como principal fonte a história de vida da pessoa contada por ela mesma. A partir da Historicidade se entende então como a pessoa estruturou-se existencialmente em sua malha intelectiva, tendo como resultado a Estrutura de Pensamento. Através do conceito da Singularidade, cada pessoa é considerada única e através de construções compartilhadas aparecem as respostas filosóficas, racionais ou afetivas para as dificuldades existenciais.

Algumas pessoas com dificuldade de expressar-se verbalmente o fazem de forma brilhante através da escrita, da música, da pintura, da dança, da afetividade. E todas estas são formas de contar a própria história de vida. Uma pessoa que vive hoje em circustâncias que estão em desacordo com sua Estrutura de Pensamento ao revisitar suas fontes pode fazer os ajustes necessários, resignificar questões e seguir seu caminho confortavelmente.

Não é raro ouvir queixas de pessoas que ao longo da vida usaram o trabalho como principal forma de expressividade.
Com o passar dos anos, não é mais possível exercer algumas atividades que sempre foram rotineiras na vida dessas pessoas. Podem ocorrer aí alguns choques existenciais onde a pessoa passa a sentir-se menos útil, menos importante, fica abatida e inicia-se uma maratona de consultas, remédios, processos de somatização. Um dos possíveis alívios pode estar justamente na história de vida desta pessoa.

Ao revisitar, olhar para tudo o que fez, projetou, buscou, vivenciou, pode perceber o quão importante foram suas ações, a sua doação, o acolhimento que deu à muitas pessoas, um lindo legado que deixou. Esse dar-se de contas permite uma resignificação consigo mesmo. À partir desse novo olhar a pessoa pode atualizar dados da história com seu novo contexto, lugar, tempo. Desconstrói e reconstrói sobre novos alicerces, muitas vezes mais sólidos, fatos, crenças, verdades que carrega consigo e que em alguns casos refletiram culpas, medos, dores no corpo e na alma ao longo da vida.

Neste caminho, que chamamos de Historicidade em Filosofia Clínica, pode-se vivenciar situações difícieis, mas não há necessidade de permanecer nelas e muito disso dependerá do olhar, do foco dado à estas questões. A realidade não é somente aquilo que nossa mente e olhar alcançam, existem também os espaços entremeio. É como uma fotografia que a pessoa registra, ali está parte de um momento, que se olhado novamente com atenção pode revelar elementos que no primeiro instante passaram despercebidos, ou que a lente não capturou. As lembranças que carregamos são memórias vivas, caminham, nos acompanham e principalmente, se atualizam.

Usar a compreensão no lugar do julgamentos para consigo e com os outros, entender que cada ser estruturou-se de forma singular, através das milhares de combinações que perfizeram toda sua história de vida. Todos os elementos exteriores à esse indivíduo, como escola, família, grupo social, governo, religião, etc., somados com seus elementos interiores, como personalidade, percepção, emoções, motivações, valores, buscas, resultaram no indivíduo em si. Cada pessoa vê à si mesmo e ao mundo da forma que lhe parece. Tem o seu certo, suas verdades, de acordo com toda essa estruturação que traz consigo de cada momento de sua existência.

Saber ouvir é um dos grandes acolhimentos que pode ser oferecido à uma pessoa, é uma forma de expressar gentileza e interesse por quem tem tanto à contar. Partilhar sua história, suas vivências, dores e alegrias com um ouvinte sem julgamentos, atento, que irá acolher a pessoa em cada um destes pontos, é muitas vezes uma experiência transformadora.

*Artigo escrito em conjunto por:
Dilvane Balen e Alexandre Lima
Filósofos Clínicos
Chapecó e Porto Alegre/RS

Comentários

Visitas