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Leituras de Filosofia Clínica II*


“Podemos falar aos outros somente quando participamos de suas preocupações, não por condescendência, mas nos envolvendo em seus problemas. Podemos indicar a resposta cristã apenas se, por outro lado, não formos iguais a eles. Em terceiro lugar, podemos usar essas pessoas e suas ideias para despertar os que ainda vivem numa torre de marfim. Podemos despertar nelas elementos escondidos sob respostas que pensam possuir. Tenhamos na mente essas três fases. Devemos participar sem perder nossa identidade. Deixemos de lado a complacência com os que pensam já conhecer todas as respostas, mas não percebem seus conflitos existenciais.
Nossas respostas devem ter tantas formas quantas forem as questões e as situações individuais e sociais” (Paul Tillich. Teologia da Cultura, pp. 265-266).

Com essas palavras o filósofo e teólogo alemão radicado nos EUA, Paul Tillich (1886-1965), mostra que as respostas cristãs devem levar em conta primeiro a questão da pessoa a ser evangelizada. Impor um Cristianismo como resposta a questão que o outro não tem, não possui validade nem resultado efetivo. Essa concepção é fruto de quem presenciou o nascimento do regime nazista, e vivenciou o horror quando foi capelão na Primeira Guerra, vendo amigos morrerem e soldados lendo Zaratustra de Nietzsche ao ver suas esperanças todas ruindo nas cenas de mortandade à sua volta. Alguém que, diante dos limites e crises existenciais da alma humana, viu as esperanças ruirem, restando angústia, desamparo, desespero, desânimo, ausência de sentido e de um fundamento último. E o que tem Teologia e Cristianismo a ver com Filosofia Clínica?

Na prática de consultório, o filósofo clínico mesmo com toda a carga de seu conhecimento filosófico e com toda base da própria Filosofia Clínica, precisa aproximar-se de seu partilhante a ponto de por meio de uma recíproca de inversão, ir ao mundo ou à visão de mundo de quem busca por seus préstimos. A situação dos que procuram o consultório às vezes muito se assemelha ao que Tillich presenciou durante a Guerra. Nesse exercício de entrar em recíproca, é o outro quem diz quais são suas questões e somente após conhecer bem essas questões é que será possível buscar “respostas” efetivas. Esse conhecimento se dá por meio dos exames categoriais, historicidade, dados divisórios e enraizamento, passos que aqui aparecem didaticamente, mas que são inteiramente feitos respeitando a subjetividade de quem procura o consultório.

O texto de Tillich é dirigido aos educadores e sua finalidade é a evangelização a partir da questão do outro e não como resposta a questões que inclusive a pessoa a ser evangelizada não tem. Na Filosofia Clínica a meta jamais será uma “evangelização” do outro. Não há respostas prontas e nem respostas construídas para cada questão. Não há sequer certeza se haverá resposta após conhecer a questão do outro. O que o filósofo clínico sabe acerca de como será desenvolvida a clínica? Nada.

Somente com o andamento dos trabalhos é que se reconhecerá a questão do partilhante. E, com base nessas questões, respeitando a subjetividade, é que se pensará uma singular “resposta” ao que o partilhante necessita. Enfatizo a “resposta”, pois, às vezes, o partilhante sequer precisa de alguém dizendo o que deve fazer. Às vezes, somente um desabafo em uma ou duas consultas são o suficiente para externalizar suas questões e deixar a clínica com o alívio que precisava. Em outros momentos será esse mesmo tipo de desabafo que fará com que suas “ideias” se reorganizem fazendo com que ela encontre meios de resolver o que precisava.

Como se pode notar, nada é definitivo para a Filosofia Clínica. Entretanto, não é um subjetivismo relativista que essa proposta terapêutica propõe. Sua proposta está em trabalhar a partir da pessoa, sabendo de sua “circunstancialidade” e de todos os elementos que a afetam direta ou indiretamente. Com isso pode-se dizer que ao trabalhar com o partilhante em vista do “bem-estar” ou alívio entre os tópicos de sua Estrutura de Pensamento, cabe a seguinte reflexão: não é finalidade da clínica responder a questão de modo indevido, levando em conta exclusivamente a subjetividade do partilhante.

Alguns exemplos disso valem ser apresentados. Um marido traído pode chegar ao consultório dizendo que somente após matar sua esposa ou seu amante é que recomeçará sua vida. Ou, em outro caso, alguém que não tem dinheiro para pagar suas dívidas resolve que roubará um banco para liquidar suas dívidas, pois a ficar endividado, ele prefere suicídio. O assassinato, o roubo ou o suicídio não são as respostas que a clínica filosófica bem aplicada irá dar a esses partilhantes. É claro que são casos caricatos e exagerados, mas ilustram bem o que se quer apresentar. Embora se respeite a subjetividade em vista de trabalhar com o partilhante, a Filosofia Clínica não é arbitrária.

Entretanto, a não arbitrariedade da Filosofia Clínica também não é proposta de estudos de diagnósticos e formulas de resoluções. Questões existenciais necessitam de respostas existenciais. E é nesse sentido que as palavras de Tillich ajudam a refletir esse aspecto da vida humana. A esse respeito ele diz: “Nossas respostas devem ter tantas formas quantas forem as questões e as situações individuais e sociais”. Veja que ele, embora tenha a finalidade de propor uma mensagem, está consciente de que se ela não toca a questão da pessoa em sua complexidade individual, jamais irá atingi-la. Em relação à Filosofia Clínica, esse aspecto subjetivo de chegar ao outro também é válido.

Não são nossas respostas que ajudarão o outro. Faz-se necessário compreender o que o outro tem como questão – questão aqui tem sentido abrangente: pode significar problema, crise, tristeza, falta de sentido, etc. – e somente após a montagem da Estrutura de Pensamento é que será possível um trabalho de aplicação de submodos para viabilizar as “respostas”. Entretanto, mais uma vez vale frisar: as respostas não estão prontas, não são conteúdos de mensagens, muito menos formulas pré-estabelecidas. Responder aqui significa encontrar um meio de viabilizar um trabalho que somente na prática será possível pensá-lo junto ao partilhante.

Por fim, cabe ao filósofo clínico, embora faça a recíproca de inversão, ou seja, vá ao mundo existencial do outro, pensar as palavras de Tillich: “participar sem perder nossa identidade”. Isto é, o filósofo clínico por mais que esteja participando por meio da dita recíproca, somente pode ajudar por estar vendo no exercício de seu papel existencial de cuidador com todo arcabouço que o formou antes de iniciar os trabalhos com a clínica, acrescido de sua experiência e sensibilidade enquanto humano.

Pois, por maior que seja seu método, jamais deverá prescindir de sua humanidade. Uma frase que tenho visto divulgada como de autoria do Carl Gustav Jung (o que não posso confirmar, mas que não perde sua importância) ilustra bem um elemento para até os mais estudiosos da arte do cuidado do outro como terapeuta: “Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar a alma humana, seja apenas outra alma humana”.

*Miguel Angelo Caruzo
Filósofo Clínico
Juiz de Fora/MG

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