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Estamos juntos ?**

Haicai * é uma forma extremamente pequena de poesia, surgida no Japão durante o século XVI, que valoriza a concisão e objetividade. A idéia é transcender a limitação imposta pela linguagem usual e pensamento científico-linear e transmitir a percepção da essência de um local, momento, drama em apenas 17 silabas. Tudo precisa estar refletido em poucas palavras.

Em seu livro “Shogun”, James Clavell descreve esta forma de expressão como uma parte do ritual onde o guerreiro samurai escreve um Haicai antes de cometer o suicídio.
Exemplo: “Barco de papel naufraga na torrente chuva de verão” ou “Estas pimentas! Acrescentai-lhes asas e serão libélulas”.

Se já é difícil descrever o significado de uma existência, imagine agora fazer isto em apenas 17 silabas. Palavras impactantes que vão enquadrar o que restou da jornada de alguém neste planeta, neste plano. Um costume ocidental semelhante é colocar frases sobre túmulos e mausoléus (epitáfios) homenageando pessoas ali sepultadas.

Robespierre, personalidade marcante da Revolução Francesa – “Passante, não chores minha morte”. Robert Frost, poeta californiano – “Ele teve um caso de amor com a vida”. Mario Quintana, poeta gaúcho das coisas simples, marcado pela ironia – “Não estou aqui”, refletindo sua imortalidade através dos livros publicados.

Meu amigo, filósofo e escritor Beto Colombo, muito saudável física e espiritualmente, experimentou projetar o que hoje resumiria sua existência: “encontrei Deus, e ele me vê pelos olhos dos outros”. Inspirado no Beto, tentei simular o que seria meu primeiro e último Haicai: “Aprendi, criei, transformei, respeitei, amei, aproveitei”.

Não foi fácil, dias inteiros meditando, praticando introspecção, sem contudo alcançar uma representação que contemplasse eternizar minha existência em 17 silabas. Somos mais que um haicai, pensava eu. De qualquer maneira a experiência foi válida porque me auxiliou a ver que estava descrevendo minha passagem e não minha essência. Esta sim talvez caiba dentro de um haicai.

Deixemos a meditação de lado e voltemos ao mundo real. Imagine o indivíduo como um circulo, onde no centro reside sua essência e à medida que migramos para a periferia, esta essência vai se diluindo e transformando-se em derivativos.

Gostar de cinema, teatro, viagens, esportes, dança, culinária são afinidades derivativas que aproximam casais, mas não são essência, não é disto que tratam os haicais. Alguns relacionamentos se apóiam e sobrevivem apenas destes encontros periféricos. Poderíamos chamá-los metaforicamente de convivência por vizinhança.

Os núcleos, essências, almas, seja lá o nome que se queira dar, nutrem-se de amor, fé, sabedoria, justiça, caridade, esperança, liberdade, beleza... Talvez alguns prefiram ganância, falsidade, poder, prazer ...cada indivíduo tem seu âmago e pode fazer um esforço para percebê-lo, metaforicamente haicaizá-lo e conscientizar-se de que se as palavras agora ainda não são boas, talvez ainda haja tempo para resignificá-las.

O desafio do encontro é reconhecer-se, descobrir-se e depois, completamente despojado, caminhar em direção ao outro. Ir além da linguagem, ultrapassar os portais periféricos e fazer os núcleos se encontrarem em um diálogo silencioso, sincero, simples e objetivo, assim como um Haicai. “O outro só vai existir em relação à mim, porque eu existo”, “Amo-te porque tu és tu e eu sou eu”, ou como dizia Leonardo da Vinci, “estar junto não é estar perto, e sim do lado de dentro” – 18 sílabas.

* Haicais japoneses tem regras de métrica bem rígidas; haicais brasileiros não são tão rigorosos assim.

**Ildo Meyer
Médico, escritor, filósofo clínico
Porto Alegre/RS

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