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Destinados ao vigente*

“O filósofo, ainda que nada possua, é dono do próprio destino.” **

A motivação para escrever esse texto veio do filme sobre Giordano Bruno que, inclusive, recomendo. Não li nenhuma obra dele. E o pouco que sei foi lendo textos introdutórios de história da filosofia. Mas, a vida e a pensamento desse filósofo não importa aqui. No filme, duas falas me motivaram a pensar o que vou expor brevemente. Contudo, não me comprometo a argumentar sobre as ideias que me vieram. Pretendo apenas compartilhá-las. Os conceitos que utilizo são mais próprios ao senso comum do que ao rigor filosófico.

No filme Giordano Bruno diz: “O filósofo, ainda que nada possua, é dono do próprio destino”. Uma pequena frase me trouxe uma série de confabulações internas. Para auxiliar essa exposição, busco dois pensadores. O teólogo e filósofo Paul Tillich, afirmava que a filosofia obedece à tentativa do filósofo de corresponder ao logos, à razão. E que ela não poderia jamais corresponder a outro princípio como, por exemplo, às questões cristãs. Tillich confiava na possibilidade de as verdades reveladas (base para a teologia) e as filosóficas convergirem em algum ponto a partir de caminhos que lhes são próprios. Afinal, segundo postulava, não há verdades, mas verdade.

A esse respeito, Heidegger foi ainda mais enfático, e diz que pensar uma filosofia cristã é o mesmo que pensar um “ferro de madeira”. Isso porque o âmbito em que se constrói o pensamento cristão é diferente do que busca a filosofia, mesmo que o filósofo seja cristão.

Apresentadas as concepções tillichianas e heideggerianas – que ilustrativamente servem para se prestar ao que penso – faço agora algumas considerações. Quando um filósofo (trato de filosofia porque é a área na qual transito, e talvez por questões que lhes são próprias) se propõe a buscar algo, ou é motivado por algo, ou qualquer tipo de motivação ou finalidade, em última análise sua busca somente é legítima quando a motivação lhe é própria e não externa a ele. Daí é que desenvolver uma filosofia cristã é inviável. Pois impediria o filósofo de criticar suas próprias convicções no seu caminho de pensamento.

Motivado por sua questão própria ou, nas palavras de Tillich, buscando corresponder ao logos, o filósofo inicia um caminho cujo fim não sabe onde vai dar. Podendo, desse modo, desconstruir todas as suas convicções, crenças, verdades, etc. Toda ordem estabelecida é questionada, seja por meio de convenção ou imposição. Nesse instante entra a segunda frase que surgiu no filme por parte de um homem que dialoga com Bruno: “Há momentos em que você e suas teorias me provocam medo. Penso na desordem que poderia nascer no mundo se todos... até os servos, os banqueiros... o que queria trazer para minha casa, os pobres... se habituassem a pensar como você quer”. Nessa frase reside o risco que a busca do filósofo gera. Há a possibilidade de romper com toda ordem de pensamento, leis, moral, costumes, conhecimento, entre outros, estabelecida.

A mudança, o novo, causa medo há muitos. Acordar um dia pensando que tudo o que acreditou até então não vige mais, assusta. Pode trazer um caos interno e externo. Então, um filósofo nesse momento pode provocar o medo, como expresso na frase do interlocutor de Giordano Bruno.

Quando pensaram diferente da ordem vigente, como no caso de Giordano Bruno e Guilherme de Ockham na filosofia – abrangendo as instâncias há o Galileu Galilei nas ciências, o Che Guevara no âmbito social, até mesmo o Leonardo Boff na teologia – o erro do pensamento vigente foi pensar que eles buscavam ser contra o que estava estabelecido. Seria uma insanidade almejar simplesmente ir contra o já posto, se este fosse, no pensamento desses autores, o certo. Seria um absurdo interior ir contra o que conceberiam como a verdade. Não faria muito sentido, uma vez que concebessem o sistema contra o qual se colocam, o isento de falhas.

Quando pensaram coisas que não correspondiam ao que se acreditava ser o real, duvido que fosse apenas por um “capricho” intelectual. Esses homens deram a vida pelo que acreditaram. Não somente vida no sentido de morrer pela causa, mas de dedicação da vida, do tempo que dispunham. Heidegger, filósofo que atualmente estudo, era professor auxiliar de Husserl, pai da fenomenologia atual, quando começou a desenvolver uma fenomenologia com traços próprios. Seria, a meu ver, um grande absurdo discordar de vários filósofos consagrados pela história, neste caso inclusive seu “mestre”, para defender uma ideia própria por mais de cinquenta anos. Não digo que acredito que haja gente assim. Mas, penso que há um número muito maior dos que são simplesmente fiéis aos que pensam e, por isso, levam até o fim.

Mas, a essa altura surge uma questão: Na primeira frase citada, afirmou-se que o filósofo é dono do seu destino. Entretanto, foi dito também que os resultados podem ir contra as convicções do filósofo. Desse modo, como é possível alguém cujo pensamento é capaz de desconstruir as convicções do pensador, dar a este a posse de seu destino? Trata-se de um destino que contemplam algumas vias, mesmo assim permanece livre. Como exemplo, pensemos duas. Um filósofo pode viver segundo o sistema vigente, mesmo que suas ideias apontem para outros caminhos. Pode também optar por caminhar sob a égide de seu pensamento, ficando a mercê das consequência deste. E aqui deixo exemplos de algumas das possibilidades de apossar-se de seu destino.

E o que seria então não viver com a posse de seu destino? Não é preciso ser filósofo, e poucos o são, para perceber um mundo no qual vigora a entrega do próprio destino ao estabelecido. Não basta questionar para ser capaz de desconstruir o caminho imposto pela vida. Mas, não acredito que seja para todos o caminho que leva à posse do que se é para seguidamente poder-ser.

Eu me enquadro nessa multidão que ao mesmo tempo em que vive pensando ter superado o estabelecido, ainda se espanta com os Brunos, Ockhams, Heideggers, Einsteins, Galileis e tantos outros...

*Miguel Angelo Caruzo
Filósofo Clínico
Juiz de Fora/MG

** Frase atribuída a Giordano Bruno no filme que leva seu nome.

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