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A cidade das palavras esquecidas*


“É possível que desde Sófocles todos nós sejamos selvagens tatuados. Mas na Arte existe alguma outra coisa além da retidão das linhas e do polido das superfícies. A plástica do estilo não é tão ampla como toda a ideia (...) Temos coisas demais para as formas que possuímos”
Flaubert

Num cotidiano de atividade limite existe uma aproximação com a subjetividade do não-dito. O não-sentido concede vestígios para intervenção do artesão das palavras. Ao rasurar o texto das verdades conhecidas se anuncia uma nova conjugação existencial.

Os manuscritos costumam se insinuar na linguagem própria da mescla de eventos. Ponto de partida as sensações ainda sem nome. A expressividade desses fenômenos, um pouco antes de significar-se no traço do autor, procura um meio para transbordar sua estética sem normalizá-la excessivamente.

É possível dizer que a reinvenção do ser terapeuta acontece em seu cotidiano, num território de intimidade compartilhável na interseção com os outros dele mesmo. O lugar da ressignificação acolhe esses rascunhos da intencionalidade.

Um rol de contradições restaria desprezado, não fora o reconhecimento do discurso delirante a dar voz a esses instantes de não-ser. Deslocamentos por onde o clínico percorre as margens de seus convívios para acessar enredos multifacetados.

A matriz para sua ocupação literária, de onde efetua derivações transgressoras, é o devir do papel existencial cuidador. No entanto, é bom lembrar: é crime identificar partilhantes! Aqui se trata de evidenciar termos agendados, episódios que restariam abandonados não fora a distorção essencial em repensar sua prática.

O lugar da quebra discursiva é um desses refúgios de onde a fala estrangeira se anuncia. Um mestre das narrativas desconsideradas vai desvendando a correspondência desses horizontes por vir. Seu trabalho possui um inacabamento por onde as páginas indecifráveis compõem novas escrituras.

A tez inconclusa dos atendimentos renova a lacuna que se tenta descrever. Reconhecer e dialogar com a provisoriedade das crises é uma das essências do curandeiro escritor. Suas promessas se realizam nas brumas dos jogos de linguagem, quase um refúgio onde texto e contexto se confundem. A escrita rasura a folha em branco para sussurrar crônicas do absurdo. Sua vontade distorcida, ao elaborar dialetos inusitados, se faz poesia.

Nessas idas e vindas pela reciprocidade se realiza uma conversação singularíssima. A natureza permanece devir no esboço libertário da expressividade de consciência alterada. O estranhamento ao seu redor elabora um caráter substitutivo, a partir de onde reposiciona as raridades da condição humana exilada. A pronúncia dessas conversações com as margens descreve o papel do cuidador das palavras com a singularidade fora de si.

Assim é possível à multidão de personagens surgir em meio às poéticas clandestinas. Os achados do inesperado descrevem uma fenomenologia do porvir. Sua natureza transgressora aprecia o êxtase criativo dessas originalidades de tipo novo. A arte de vislumbrar e acolher horizontes desconsiderados elabora enredos de alma nova.

O jeito de ser assim descrito cumpre funções de pluralizar o exercício terapêutico. Existe uma recusa do Filósofo Clínico em se conformar ao mundo de onde brotam suas desleituras, mesmo quando suas visões vão desajustando o mundo conhecido. Ao espírito de autoria cumpre ser retórica de exceção. Sua percepção alterada revela uma estrutura refugiada na cidade das palavras esquecidas.

*Hélio Strassburger

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