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Em caso de paixão, use o cérebro!



Bom dia

A pauta de nossa reunião hoje é curta, mas de importância vital para nossa integridade. A situação está piorando, os resultados péssimos e as queixas se acumulando. Se continuarmos assim, seremos ultrapassados pela concorrência e logo decretaremos falência. Chamei vocês dois aqui, Coração e Cérebro, em regime de urgência, para comunicar uma pequena alteração em suas atribuições.

Coração, teu desempenho das funções orgânicas tem sido excelente ao longo de todos estes anos, mas no que tange as questões ditas “do coração”, está deixando a desejar. Continua a se comportar como um adolescente. Será que todos os treinamentos e reciclagens pelas quais temos investido não surtiram efeito?

Em primeiro lugar, comete erros de seleção dignos de um estagiário. Mais ainda, repete com freqüência o mesmo padrão. Esqueceu as lições que o cérebro te ensinou sobre sinais de que o outro está desinteressado? Mesmo depois de todas nossas conversas ainda é ingênuo, mole e inocente demais. Demora muito para escolher alguém, mas quando isso acontece, é totalmente passional. Cria lógicas malucas, nunca pede parecer algum para o cérebro e decide tudo sozinho. Doa-te por inteiro, não cobra nada, acredita que todos são sinceros e ama com todas as forças.

Sei que este tipo de comportamento promove aquela sensação maravilhosa de passarinhos verdes cantando, borboletas no estômago e macacos no telhado, mas isto não é duradouro. Enquanto se mantém é ótimo, tomara fosse eterno, pois é a estratégia vencedora que todos perseguimos. Mas às vezes, este mesmo coração que mostrou coragem e ousadia para mergulhar em águas profundas, afoga-se por um amor não correspondido.

Decepcionado, mas ainda batendo loucamente, deixa de ver o colorido da vida. Não suporta mais sentir dor, nem escutar um não. Tal qual uma garotinha assustada, esconde-se na elegância e finge desinteresse, abdica da adrenalina da paixão, substitui a montanha russa emocional por um carrossel e sai de cena. Pede férias, solicita licença saúde, ameaça aposentadoria precoce e delega a autonomia do sentimento para o cérebro, que solícito como um super-herói, até tenta ajudar, mas falta-lhe sensibilidade.

.Outras vezes mostra toda a falta de jogo de cintura, desencadeando arritmias perigosas. Não sabe negociar, tem ciúmes, medo, insegurança, vergonha. Têm medo até dos teus próprios sentimentos. O cérebro se aproveita disto e te escraviza, não permitindo que se aventure naquilo que tens de melhor, amar sem porquês. Está satisfeito apenas com tuas funções físicas e aquelas relacionadas ao amor pelo semelhante? Esta feliz sendo quem não és? Pode bem mais do que isto.

Cérebro, agora é a sua vez. Sei que não tem a menor experiência com o tema, é um teórico. Nunca sentiste o que é amar, tampouco ser amado. Teu alimento são conceitos e o prazer em arrumar toda a bagunça que o coração deixa para trás. Mesmo sabendo que não foi consultado, ou que por alguma razão tenha te omitido, assume a responsabilidade pelos estragos emocionais, busca nos teus arquivos todos os sinais que o coração ignorou, racionaliza e justifica a fim de curar as feridas. E ainda por cima, dá conselhos, que entram por um ouvido e saem por outro.

Outras vezes te antecipa ao coração e passa a recrutar possíveis candidatos a um relacionamento. Avalia pré requisitos, testa, cria defeitos, coloca virgulas, insere “poréns”, e quando se dá conta, as coisas já aconteceram a tua revelia ou mais provavelmente deixaram de acontecer. Não gosta de conversar, silencia, adora a lógica, e quase nunca escuta o que o coração quer dizer.

Não quero mais que fique vigiando os outros nem que trabalhe durante as madrugadas e finais de semana. Dê liberdade ao coração. Na medida em que ele tiver autonomia, poderá lhe ensinar o prazer de um sentimento. Vai gostar de desfrutar da paz que um amor romântico oferece.

Desculpem se fui muito rigoroso com vocês, acho que o estresse da vida profissional está tão incorporado em mim, que os tratei como funcionários de uma empresa, mas na verdade gostaria de cuidá-los como filhos. Lembro de quando eram crianças e viviam brincando, conversando, se divertindo. Dormíamos e acordávamos felizes, sempre juntos, unidos. Não sei o que aconteceu, mas agora cresceram e ficaram diferentes. Não se falam. Quando um gosta, o outro discorda; quando o outro escolhe, o primeiro não aceita. Parece que nem se conhecem, um quer dominar, ignorar o outro.

Se vocês não fizerem as pazes e dialogarem entre si, como imaginam se relacionar com outras pessoas? Os outros têm cérebros e corações que não funcionam igual a vocês e a complicação será maior ainda. Existem cérebros que pensam como empresas, corações que se alimentam só de amor, cérebros ditadores, corações escravos, cérebros omissos, corações frágeis...cada “eu” é diferente dos demais. Existem até mesmo casais onde um faz o papel de cérebro e o outro de coração. Antes de se aproximar dos outros, vocês precisam estar juntos e se entender. Como já foi dito por alguém,” Não é o amor que sustenta os relacionamentos, é o modo de se relacionar que sustenta o amor”. Fiquem bem. Amanhã será um novo dia.

* Ildo Meyer
Médico, escritor, filósofo clínico
Porto Alegre/RS

**Artigo escrito em parceria com Claudia Marques

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