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Leitura ingênua*



Esses dias, remexendo em alguns livros que (impulsivamente) comprei em sebos, encontrei um que somente comprei por causa do preço (R$ 7,00). Uma obra de John Stuart Mill, intitulada Da Liberdade (On Liberty). Resolvi lê-lo nas horas vagas para ver do que trata, já que é de uma coleção chamada Clássicos da Democracia e por ser um texto do século XIX, achei que não fosse achar interessante. Afinal, “um livro sobre filosofia política, quase bicentenário, poderia ser enfadonho”. Mas, para minha surpresa, estou gostando. Inclusive espero, assim que estiver com mais tempo, fazer uma resenha.

Entretanto, o que gostaria de tratar no presente texto não é da qualidade ou das teses da obra de J. S. Mill. Lendo-o percebi que a primeira impressão de um livro pode nos levar a enganos. Em outras palavras, o que num primeiro momento parece uma ideia bem articulada e claramente compreensível, pode esconder diversas teses, temas subentendidos, finalidades não esclarecidas, questões contextuais tanto pessoais quanto político e históricas.

Nos estudos que empreendo sobre Heidegger percebo que determinadas afirmações estão em germe em leituras feitas anteriormente pelo filósofo e mais claras em textos posteriores. Também é possível ver mudanças de perspectivas, finalidades não tão claras e, por fim, se me ativer em uma obra, jamais saberei a fundo (se é que isso é possível) o que ele quis com seu texto.

Enquanto me detenho na pesquisa de determinado tema, de um período e com uma finalidade específica, vejo o quanto de riqueza que se extrai ao ler várias vezes o mesmo texto que uso de base para a pesquisa. E, por fim, noto que constitui um grande engano esperar conhecer qualquer autor a partir de uma obra.

Ainda em relação à Heidegger, diversas pessoas se atêm a Ser e Tempo, lendo-o várias vezes para querer entender o autor. Mas, esquecem que há mais de 10 anos ele já vinha desenvolvendo suas pesquisas e o resultado destas aparecia em cursos e nos trabalhos publicados. Isso sem contar com as leituras dos filósofos anteriores que o influenciaram fortemente e todo o contexto do qual fez parte e que certamente contribuíram para orientação de seu empreendimento filosófico.

Não tenho a ilusão de achar que conhecerei bem esse filósofo, nem na questão específica que vou tratar. Tenho convicção de que deverei ficar sempre disposto a ter refutados os resultados do que pesquisei. Afinal, a única certeza de que tenho na vida é de que esta cessará um dia.

Voltando ao Stuart Mill, em breve devo terminar de ler sua obra. Sairei dessa leitura com várias ideias, dúvidas, novos modos de ver o mundo e meu modo de lidar com este. Mas, o que não poderei afirmar é que conheço bastante as ideias de Mill. Do mesmo modo seria ingênuo achar que, por exemplo, conheço Machado de Assis por ter lido duas obras dele (Isso mesmo! Li somente duas obras), e assim para vários outros.

Mas, nada disso tira a validade de se ler uma ou outra obra de quaisquer autores. Minha finalidade ao expor essas ideias é somente deixar claro que se constitui grande ingenuidade pensar que conhecemos o suficiente qualquer ideia que nos é apresentada pelos textos (e não somente destes). Ao mesmo tempo, penso que é sempre bom ler ideias diversificadas, pois, mesmo não nos tornando especialistas em determinados assuntos, ganharemos bastante com cada nova ideia que nos surge.

Da mesma maneira como ler J. S. Mill me ajudou a pensar outras perspectivas do tema da liberdade na organização social, mesmo não o compreendendo em detalhes – já que estes passam despercebidos por uma impressão de aparente evidência e clareza, uma vez que como não conheço tanto o autor –, certamente está valendo à pena. Ler, estudar, pesquisar somente torna-se válido quando todos os resultados sejam reconhecidos como aproximações.

A filosofia me ensinou que antes de buscar coisas novas para aprender, devemos questionar o que no quotidiano nos parece óbvio e banal. Por trás de uma palavra podem estar escondidas empoeiradas ideias que nos foram legadas há séculos e hoje se encontram com seu vigor inicial apagados. Aliás, boa parte do que disse ao longo desse texto devo a Mill e Heidegger.

*Miguel Angelo Caruzo
Filósofo Clínico
Juiz de Fora/MG

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