Não quero ser quem sou.
A avara sorte
Quis-me oferecer o
século dezassete,
O pó e a rotina de
Castela,
As coisas repetidas, a
manhã
Que, prometendo o hoje,
dá a véspera,
A palestra do padre ou
do barbeiro,
A solidão que o tempo
vai deixando
E uma vaga sobrinha
analfabeta.
Já sou entrado em anos.
Uma página
Casual revelou-me vozes
novas,
Amadis e Urganda, a
perseguir-me.
Vendi as terras e
comprei os livros
Que narram por inteiro
essas empresas:
O Graal, que recolheu o
sangue humano
Que o Filho derramou
pra nos salvar,
Maomé e o seu ídolo de
ouro,
Os ferros, as ameias,
as bandeiras
E as operações e
truques de magia.
Cavaleiros cristãos lá
percorriam
Os reinos que há na
terra, na vingança
Da ultrajada honra ou
querendo impor
A justiça no fio de
cada espada.
Queira Deus que um
enviado restitua
Ao nosso tempo esse
exercício nobre.
Os meus sonhos
avistam-no. Senti-o
Na minha carne triste e
solitária.
Seu nome ainda não sei.
Mas eu, Quijano,
Serei o paladino. Serei
sonho.
Nesta casa já velha há
uma adarga
Antiga e uma folha de
Toledo
E uma lança e os livros
verdadeiros
Que ao meu braço
prometem a vitória.
Ao meu braço? O meu
rosto (que não vi)
Não projecta uma cara
em nenhum espelho.
Nem sequer sou poeira.
Sou um sonho
*Jorge Luis Borges
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