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As flores*



Que estranha magia devia possuir neste momento a linguagem humana para guindar a frase à altura da magnificência deste certame, a que a natureza pródiga emprestou, na pompa radiosa desta primavera doirada, toda a essência sutil da sua própria alma!

E que palavra, por mais ungida que seja de requintado lirismo, por mais nimbada que seja de angelical meiguice, poderá celebrar, com segurança de expressão, toda a poesia infinita que vem de ti, ó flor, que és na missa da natureza, mal levanta a manhã, a hóstia perfumada que a terra agradecida eleva em oferenda ao sol!

Companheira inefável do homem, expressão da sua ternura, celebradora dos seus ritos, mensageira do seu amor, canto da sua alegria, selo do seu afeto, tu és a simbolização da própria vida, presente sempre, com a tua fragrância e a tua graça, a tua irisação de felicidade ou a tristeza do teu destino, a toda a nossa existência tumultuária, desde as primeiras rosas, alfinetadas com carinho ao cortinado de um berço, até as derradeiras dálias, espargidas com saudade sobre os mármores tumulares.

Há sempre em ti, rosa de raça ou malmequer agreste, há sempre em ti uma espiritualidade encantadora, que exalta e comove, que inebria e enternece: e nem fio d'ouro, nem trama de bronze, nem faceta de diamante poderão jamais exprimir, em alta glória ou em requintada graça, em riso ou em lágrima, toda a severa nobreza ou toda a delicada ternura do pensamento humano.

És tu que traduzes, mais que o próprio verbo, incolor e inane, toda a vibração dos nossos sentimentos, toda a exaltação e toda a angústia, ora cercando, com o resplendor das tuas rosas, a fronte de um deus ou ca cabeça de um mártir, ora mussitando (murmurando), entre as pétalas de um ramalhete humilde, a mais perfumada das preces ou a mais enternecida das súplicas.

Em que criação da natureza pode o homem buscar maior poesia ? Que pedaço do céu ou mar encerra em si, por mais fulgente que seja a estrela ou por mais doce que seja a onda, a fascinação inebriante de um renque de orquídeas raras ou a majestade soberba de uma paineira toucada ou a lindeza romântica de um cercado gracil, todo coroado de rosas ?

Que poema imortal se cantou até hoje, em lira d'ouro, em cujas estrofes tu não resplandeças ? Que amor sorriu no mundo, desde as idades pagãs, que não apertasse no seio um ramo de violetas, que não despertasse malmequeres e que, por fim, não desfolhasse saudades ?...

É que toda a expressão espiritual da vida, no que ela tem de mais delicado, de mais meigo e de mais puro, nasce da tua beleza, emana do teu aroma, irradia da tua graça.

É porque tu derramas na nossa existência agreste todo esse eflúvio sutil de poesia, é que conosco perenemente convives, em todas as nossas horas tristes e luminosas.

Que alegria pode sorrir sem a tua fragrância ? Que triunfo se pode celebrar sem as tuas guirlandas ? Que cerimônia se pode destoucar das tuas pétalas ? Perfumas todas as religiões, juncas todos os altares, resplandeces em todos os cultos, e flor de escol, emergindo de uma ânfora de prata ou campânula humilde debruçada num vaso de argila, tu és o raio de sol de todos os lares.

Enfeitas a vida e enfeitas a morte.

Nas tuas pétalas multicores se entrelaçam os mais puros afetos e se embalam as lendas mais lindas, desde esses lotus sagrados que ainda hoje descem, silenciosas, as águas do Nilo, levando amorosamente nos seus cálices os deuses recém-nascidos, até às rosas de Jericó em cujas corolas dormem as noivas sem mácula; desde essa flor de mirto, enlaçando o corpo escultural de Vênus, como uma serpente de lascívia, até à formosura cândida dessas rosas que numa praia pagã nasceram da espuma, brancas como a neve, e se tingiram de púrpura, nas terras do Calvário, sob as gotas de sangue caídas da Cruz.

E ainda agora, nesta primavera flava a que se pode chamar com acerto - a primavera da caridade - tu resplandeces aos nossos olhos maravilhosos, no mais alto apogeu da tua beleza imortal.

Vives em glória, para morrer em virtude, pois que dentro de algumas horas, quando começar a tua agonia, quando amarelarem os teus caules, quando fanarem as tuas pétalas, quando o vento levar o teu último perfume - deste prodigioso jardim nascerá, amparada pelo teu prestígio, toda uma grande obra de piedade redentora.

As tuas hastes formarão as colunas de um doce refúgio de esperança e de alívio.

És tu ainda, cheia de graça e cheia de bondade, que ajudarás a erigir e a cimentar o mais nobre, o mais santo, o mais cristão dos hospitais. E dos teus cálices, agora levantados, em oferenda, para o beijo luminoso do sol, correrá amanhã, como de uma fonte cristalina, a água lustral do maior dos bens.

Abençoada sejas, ó flor de poesia, flor de glória, flor de amor, flor de misericórdia!

Mário Totta

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