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Sou eu ou sou o outro?*



Há um trecho da música do Caetano Veloso que diz: “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que se é”. Note que a frase afirma um conhecimento de si que não diz respeito ao outro. Podemos observar  que a ideia que a frase passa costuma estar presente num imaginário coletivo como um princípio de verdade. Mas, a filosofia clínica (FC) nos ensina que as coisas não são tão simples quanto parecem. Para melhor compreendermos esta questão, vamos nos remeter ao tópico da Estrutura de Pensamento (EP) denominado espacialidade intelectiva.

A espacialidade intelectiva compreende nossos movimentos existenciais. Podemos apresentá-la em quatro possibilidades: inversão, recíproca de inversão, deslocamento curto e deslocamento longo. Inversão é quando a pessoa está intelectivamente voltada para si. A recíproca de inversão refere-se a quando nos deixamos envolver pelo que o outro está nos apresentando e nos colocamos a vivenciar, em alguma medida, seus relatos, suas experiências. O deslocamento curto acontece quando estamos voltados para algo espacialmente e concretamente próximo a nós, como algo que posso tocar, observar ou sentir. O deslocamento longo se dá quando a pessoa volta-se intelectivamente ao que está distante espacialmente de si, como lembranças, imagens ou desdobramentos de ideias.

A supramencionada frase de Caetano Veloso, portanto, não pode ser generalizada, pois não é assim para todas as pessoas. Embora empiricamente não entramos no corpo do outro para sentir suas “delícias” e “dores”, há quem faça essa experiência intelectivamente. Quando afirmo intelectivamente, não estou querendo dizer intelectualmente. Ou seja, não trato de uma experiência da dor do outro de modo racional, lógico ou mensurável nos eletrodos ligados em ratos num laboratório, mas trato de uma experiência vivencial dos modos mais diversos possíveis.

Um exemplo para ilustrar a experiência da recíproca podemos ver numa pessoa assistindo a um filme. Quando fica muito envolvida, uma cena de suspense leva o espectador ao desespero, uma cena de perda, às lágrimas, ou uma cena de ação, à aceleração dos batimentos cardíacos. Ninguém “vê” o espectador dentro do filme, mas não se pode “provar” que ele não estava quase o tempo todo efetivamente participando da cena.

O movimento intelectivo exemplificado acima é chamado de recíproca de inversão. Mas, essa pessoa pode sair do filme sem voltar a seu eixo existencial e manter-se fora de sua inversão. Assim, quando sai do filme, mantém-se em deslocamento longo, imaginando cenas possíveis, criando roteiros, e as possibilidades se multiplicando. Nesse momento, o deslocamento curto, que poderia nos atentar para os degraus da sala de um cinema, falta. Então, num tropeço ou tombo, a pessoa desperta seu deslocamento curto, volta-se para seu eixo num movimento de inversão, e segue para casa.

Se em um mero filme, essa espacialidade já apresenta tamanha dinamicidade, imagine para as pessoas que tem uma inclinação para as relações interpessoais, chamadas em FC de interseção. Uma mãe pode esquecer totalmente de si quando se depara com a dor de seu filho num estado de enfermidade. Nesse momento, a mãe pode esquecer da própria fome, sono, cansaço. Quantas vezes já não vimos pessoas que depois de uma longa jornada acompanhando um ente querido hospitalizado, quando este é liberado, se dão conta de seu cansaço, estado físico e de si de modo geral. Trata-se de uma recíproca, muitas vezes reforçada pelo amor**, mais forte do que a consideração referente a si***, que somente é enfraquecida quando o amado apresenta melhoras.

Esse movimento pode ser percebido até nas mais inocentes conversas. Quantas vezes alguém já não se queixou de outro não ter prestado atenção ao que foi dito? Provavelmente estava inversivo e não se atentou ao outro. Quantas vezes já vimos um professor se surpreender com a resposta de um aluno que respondeu a uma questão, quando parecia não estar prestando atenção a nada? Estava fazendo recíproca com o professor, embora aparentemente mostrava-se desenhando ou olhando para fora. As possibilidades de exemplificação são tantas que as apresentadas são infimamente representativas.

Note que a FC é uma abordagem de sutileza. Os movimentos intelectivos comumente são muito dinâmicos. Algumas pessoas até privilegiam um deles. Mas, de modo geral, são bem entrelaçados na vivência hodierna.

Depois das referidas considerações, podemos nos perguntar, para além da delícia e da dor, buscando maior abrangência existencial: quando sou eu e quando sou o outro? Geralmente vou me dar conta de que intelectivamente sou o outro somente quando já voltei a meu eixo e, num ato de inversão, sou eu. Desse modo, valendo-nos de uma das afirmações mais satirizadas de Caetano Veloso, poderíamos reconstruir sua frase, adaptando-a à reflexão que a FC nos sugere, da seguinte forma: “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que se é... ou não!”.

*Miguel Angelo Caruzo
Filósofo, Mestre em Filosofia da Religião, Doutorando em Filosofia, Filósofo Clínico
Juiz de Fora/MG
** Referente ao tópico da EP chamado emoções.
*** Tópico da EP chamado o que acha de si mesmo possivelmente associado à axiologia.

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