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Intimidade*

                                             
No dia do lançamento do livro, estava preocupado. Parecia até que o autor era eu. Nunca havia comparecido a uma sessão de autógrafos restrita a pouquíssimos convidados. Imaginava uma sala quase vazia onde o autor, depois dos trinta minutos iniciais de movimentação de pessoas, restaria isolado, apoiado em uma mesa, torcendo para que mais alguém entrasse na livraria. Depois de mais uns trinta minutos de espera e solidão disfarçada, encerraria a sessão com a sensação de vazio.

Não gostaria que isto acontecesse contigo e gastei várias horas pensando estratégias de preencher física e emocionalmente a livraria. A idéia de fazer o lançamento em um local pequeno, íntimo, numa cidadezinha no interior de Minas Gerais havia sido tua. Eu era apenas um convidado. Achei que não deveria questionar, afinal de contas, você é uma escritora experiente e eu, apenas um aprendiz. Também fiquei com receio de te contaminar com meus fantasmas. Apesar disto, algo me dizia para ficar atento a uma possível falta de público.

Percebeste facilmente minha angústia, pois no caminho para a livraria, enquanto andávamos calmamente pela calçada, seguraste minha mão e a envolveste com uma forma única de proteção e segurança. Diferente daquela mão que acaricia, tua mão me conduzia. Foi bom, muito bom, andar aqueles passos de mãos dadas.

Chegamos pontualmente na livraria. Havia mais ou menos umas quinze pessoas no interior. Meus olhos fizeram uma rápida inspeção enquanto meu coração fazia uma leve taquicardia. O cheiro de livros me era familiar e serviu como uma espécie de calmante. Logo o editor se aproximou, cumprimentou-nos e indicou a mesa onde estarias autografando.

Ficava bem ao fundo da sala, ao lado de um abajur clássico branco enorme, que iluminava indiretamente a pequena mesa circular de apenas dois lugares. Por sobre a mesa, uma toalha branca e um pequeno arranjo de flores colhidas na região. Senti que aquele ambiente combinava contigo e te faria bem.

Quando largaste minha mão para acompanhar o editor, teus olhos me sinalizaram que realmente estava tudo bem, mas eu ainda tinha dúvidas.

Sentei em uma poltrona próxima da porta de entrada. Nem sei por que escolhi aquele lugar. Quem sabe uma vontade de controlar quem entrava, ou talvez a esperança de puxar algum passante para dentro em caso de necessidade. Dali também tinha uma visão completa da sala e especialmente da tua mesa.

Ao meu lado sentou uma senhora simpática e bastante conversadora. Devia ter uns 75 anos de idade e foi logo se apresentando, dizendo que nos viu chegar juntos e queria me parabenizar por ter casado com uma mulher tão interessante. Antes que eu pudesse responder, emendou sua conversa contando que te acompanha literariamente desde o primeiro romance e não podia perder a oportunidade de te conhecer pessoalmente, pois o lançamento do livro estava acontecendo quase que milagrosamente na pequena vila onde residia.

Jamais teria condições de viajar até São Paulo em outra noite de autógrafos para te encontrar, muito menos sentar ao lado de teu marido, sequer trocar umas breves palavras contigo. Estava tão eufórica com aquele momento especial de sua vida, que fiquei sem jeito de dizer que nos conhecêramos há apenas dez dias.

Comecei então a entender o significado de promover o lançamento de um livro sem grandes badalações, agraciando os leitores com uma atenção diferenciada, presenteando-os não apenas com uma bonita dedicatória, mas com a presença genuína da pessoa do escritor. A conversa com a senhora me enquadrou naquele ambiente e desligou de vez a preocupação com a quantidade. A intimidade estava preservada.

Mais que um simples presente, naquela noite estava oferecendo aos presentes uma jóia rara, um pedacinho da tua intimidade. Foste muito além do livro e mostraste o quanto tua vida se encaixava na história  e o quanto cada personagem criado deixou de ser ficção ou nunca chegou a ser. De longe observava teus olhos, tuas mãos, teus lábios. Estavas de corpo e alma com teus leitores.
Intimidade não se resume a relações físicas. Intimidade também é poder rir juntos de uma história que nem todos conhecem o final.

*Ildo Meyer
Médico, escritor, filósofo clínico
Porto Alegre/RS

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