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Adão e Eva contemporâneos*


A história é bíblica, acredite se quiser. Eva não veio ao mundo por acaso. Existia um propósito: partilhar a vida. Já pensou? Adão estava lá sozinho. De repente surge alguém para conversar, brincar, trocar, ajudar... Na verdade, acho que pra ajudar não era o caso; eles tinham tudo que precisavam.

O certo é que a vida no paraíso ficou bem melhor depois que Eva apareceu. Como foi a passagem do status de amigos para casal não sei dizer. Só existiam os dois e convivendo juntos todos os dias, naturalmente, algo haveria de acontecer. Não havia nada, nem ninguém para atrapalhar. Nem mesmo vergonha eles sentiam. Posso imaginar vários modos de aproximação, e todos, sem exceção, nada angelicais. Fizeram sexo, gostaram, repetiram, desfrutaram.

Não estavam mais sozinhos. Perceberam que um tinha ao outro para abraçar quando o mundo parecia grande demais.  Vamos dar um nome para este tipo de relação? Amor.

Viviam no paraíso. Amavam-se. Nada lhes faltava. Eram extremamente felizes. Será mesmo? Havia uma maça no alto de uma árvore que não podiam tocar. Passaram a almejá-la, sonhar com seu gosto, imaginar uma vida melhor com sabor de maça. Deu no que deu, a tentação os venceu. Provaram do fruto proibido em busca de algo melhor. Quando se deram conta, perderam aquilo que já possuíam. Deixaram de ser felizes?

Não sei, mas imagino que passaram mais trabalho, tiveram algumas desilusões, machucaram-se. Sobreviveram, tiveram filhos e deixaram uma herança emocional que vem sendo transmitida de geração em geração. Reza a lenda que somos a bola da vez, representantes atuais do casal, supostamente aperfeiçoados emocional e intelectualmente. Também gostaria de acreditar nisto.

Vivemos em um lugar nada parecido com o paraíso, as tentações deram galhos,  saíram das arvores e se espalharam por toda a parte, a voz que nos censura agora se chama superego e a Eva anda meio diferente.

Não vamos confundir Eva com Amélia, a mulher de verdade, submissa, que passava fome ao lado do marido e achava bonito não ter o que comer. Falo da Eva que apareceu de mansinho na vida de Adão e tirou tudo do lugar. Mudou seus hábitos, opiniões, sonhos. Mostrou a ele novos lugares, novos sentidos. Virou amiga, companheira, ouvinte, amante, cúmplice, conselheira. Virou tudo pelo avesso, inclusive encorajando-o a fazer aquilo que jamais poderia conceber: desafiar seu superego.

Adão não quis mais se afastar dela. Seu cheiro o embriagava, o toque causava arrepios, a voz o excitava, o gosto do beijo lhe afogava, as conversas o aprisionavam. Adão e Eva cresceram sensorial e emocionalmente juntos. Não precisavam se falar ou tocar, percepcionavam-se mutuamente..

Muitos homens, talvez todos, passem a vida na ilusão e na espera do bendito momento em que encontrarão sua Eva, quando então conseguirão retornar ao paraíso perdido. Isto não vai acontecer. Por outro lado, acredito que todo homem precise de uma Eva. O mundo seria muito melhor. Concordo com a idéia do Criador.  Ainda não encontrei a minha, mas cheguei perto.

Não foi retirada de minha costela, mas parecia entender e sentir igual a mim. Cobranças,  mal entendidos, ameaças, chateações, ofensas, dores de cabeça não faziam parte de seu mundo. Chuva, temporal, relâmpagos, nada estragava nossas conversas. Corríamos contra o tempo e nem percebíamos. Era a versão fashion da Eva ancestral. Falava várias línguas, conhecia inúmeros lugares, cabelos bem tratados, alta, forte, bonita, impulsiva, mas sem unhas ou garras para me machucar, sob hipótese alguma.  Sentia-me acolhido, protegido, amado, respeitado, tranqüilo. Até o superego ela ajudou a anestesiar. Pode um homem querer mais? O pior é que pode.

As tentações contemporâneas não são maças. Nem tampouco outras mulheres. Quem tem uma Eva, jamais quer saber de outra mulher. “Evas” são presentes que locupletam, enriquecem e saciam os desejos masculinos. 

A perdição de hoje chama-se medo. Atinge homens e mulheres. Medo de perder a liberdade, de perder o amado, de não corresponder, de não estar pronto, de cair na rotina, de se frustrar ali adiante, de repetir um erro do passado. Pode até ser um medo copiado do dicionário - estado emocional resultante da consciência de perigo ou ameaça, real, hipotética ou imaginária.

Não sei qual dos medos nos assustou. Choramos juntos quando ele mostrou os dentes. Choramos cada um em seu canto quando nos separamos. Não tem graça conversar sozinho quando ouvir o outro era a melhor parte. Dói conversar com amigos, conhecidos, terapeutas e sentir que a partilha fica incompleta. Ninguém consegue se aproximar como fazíamos. Dói ficar olhando o telefone e não conseguir ligar. Dói escrever um artigo e não ter mais para quem mostrar antes de publicar. Dói não ouvir mais a voz, a gargalhada e imaginar que possa estar sofrendo por minha causa. Dói saber que ainda pensa em mim. Dói saber que nos gostamos, nos queremos, nos perdemos, e não conseguimos achar o caminho. Dói, mas não machuca, porque sabemos que a história não termina aqui.  Acredite se quiser.

*Ildo Meyer
Médico, Escritor, Filósofo Clínico
Porto Alegre/RS

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