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Preso por vontade própria*


Depois do lançamento do livro, voltei para meu quarto, mas estava sem sono. Peguei um bom tinto que estava na geladeira, sentei na cadeira de balanço, abri a garrafa, enchi meia taça e enquanto o vinho respirava, fiquei olhando a lua através da lente formada pelo vidro contendo o liquido de cor escura.

Era noite de lua cheia, passava da meia noite, o silêncio indicava que a cidade estava dormindo e o único som que escutava, era uma coletânea de fados que havia ganho de um amigo e tocava suavemente no computador.

A lua se escondia por trás do vinho, mas conforme o balanço da taça, a fazia aparecer e desaparecer. Brinquei assim por uns bons minutos enquanto pensava nas coisas que pareciam estar anestesiadas em mim e começaram a despertar e também se fazer ver durante a viagem.

Para fazer com que a lua se mostrasse por inteiro, comecei a beber e esvaziar a taça. Parece que o primeiro gole sempre é o melhor. O contato das papilas, ainda ansiosas e intocadas, com o vinho causa em mim uma reação que faz o gosto da bebida se propagar por toda a boca.  A partir dali imagino o liquido fluindo direto para o coração e este o distribuindo com gosto de felicidade para o resto do corpo. Gosto de pensar e beber assim.

Neste clima, senti estar me elevando com o vinho e justo naquela fase onde a inibição desaparece e os pensamentos se multiplicam, surgiu a pergunta: Qual a relação da anestesia com minha vida?

Sim, minha especialidade médica é anestesia, essa é minha profissão, meu ganha pão, mas não era isso que eu queria saber. Questionava por que havia escolhido especificamente esta especialidade e o que ela tem feito comigo ao longo dos anos.

Dizem que algumas pessoas escolhem suas profissões para que possam elas mesmas cuidarem de suas carências. Psiquiatras escolhem a especialidade para entender suas mentes, advogados graduam-se para defender seus interesses, endocrinologistas buscam  novos tratamentos para emagrecerem...Estaria eu, metaforicamente falando, utilizando  conhecimentos médicos  para deixar meus sentimentos e minha vida anestesiada?

Quem sabe tenha feito isto algumas vezes no passado. Quem sabe ainda faça eventualmente. Atire a primeira pedra quem nunca se encolheu frente a uma dor existencial e o que mais desejou naquele momento foi dormir tranquilamente no colo de seus pais e acordar no dia seguinte com tudo resolvido.

Algumas palavras que escutei naquela noite, ajudaram a levar meu pensamento mais longe ainda. “Liberdade é estar preso e não ter vontade de fugir”. Pôxa vida, isto tinha tudo a ver comigo naquele momento. Existem várias formas de lidar com dores existências. Nada me prendia ali, naquela biblioteca, naquela cidade, naquele país, naquela varanda, mas não me passava pela cabeça ir embora. Sentia-me tão pleno, tão tranqüilo, que não desejava nada diferente. Não estava anestesiado. Estava preso por vontade própria.

Ildo Meyer
Médico, Escritor, Filósofo Clínico
Porto Alegre/RS

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