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Perspectivas de uma racionalidade*


O indivíduo, ao fazer filosofia, necessita criticar as perspectivas de sua racionalidade e não apenas sua ideologia. Urge desconstruir a ingenuidade, pois não são apenas alguns argumentos, prova de verdades irrefutáveis.

Existe a necessidade premente de romper com uma cultura onde impere a racionalidade, através de dois princípios capitais: o primeiro, que simboliza serenidade, claridade, medida. O segundo, que representa força impulsiva, afirmação da vida, asseveração da existência e dos impulsos, cotidianamente submetidos ao constrangimento da razão.

Percebemos na cultura ocidental, marcada pela repressão dos instintos vitais e indeferimento ao prazer, um entrave em aceitar e compreender o indivíduo em sua totalidade. Aqui podemos citar o Cristianismo, que representou um dos últimos estágios de decomposição da cultura grega e dos impulsos vitais, inerentes e indispensáveis à condição humana sadia.

A filosofia de Nietzsche abalizou uma densa ruptura da cultura ocidental. Nevrálgico da racionalidade imperante, afirmou a anteposição de tudo que fora recalcado, como a vida instintiva.

Em A origem da Tragédia[1], Nietzsche distingue na cultura grega, dois princípios fundamentais, que serviram de matriz para avaliar a cultura européia: O Apolíneo, oriundo do deus Apolo, que simboliza o lado luminoso da existência, serenidade, claridade, medida, racionalidade e o Dionisíaco, inspirado no deus Dionísio, que representa desmedida, força impulsiva, erotismo, orgia, afirmação da vida, embriaguez de viver.     

Estes dois princípios estavam presentes na tragédia (que é o sentido mais amplo da afirmação, capaz de aceitar e compreender o indivíduo em todas as suas nuances) e na cultura grega antes da influência de Sócrates, que submeteu os impulsos vitais ao cerceamento da razão.  A partir de Sócrates e Platão, a cultura ocidental foi marcada pela repressão dos instintos vitais e a negação do prazer. Isso acarretou um empobrecimento significativo na existência humana.

Nietzsche afirmava que, ao deixar-se conduzir pelo espírito Dionisíaco, o indivíduo era arrebatado até a exaltação máxima de todas as faculdades simbólicas, experimentando e expressando sentimentos até então irrevelados.

Sob esse prisma, a arte surge como uma atividade metafísica liberadora da aflição humana, corporificada na força arrebatadora do erotismo, da orgia, da afirmação da existência e de seus impulsos, volvendo na expressão mais elevada do indivíduo.

Nietzsche, crítico da racionalidade imperante, afiançou a primazia de tudo quanto fora debelado. Era a apologia aos instintos. A arte para Nietzsche se atrela ao espírito Dionisíaco, correspondente à expressão mais elevada do indivíduo. Por um lado, é o excesso de uma constituição florescente que é parida no mundo da imagem e do desejo; por outro, é a excitação da função criadora, mediante imagens e desejos de uma existência intensificada, supra valorizada e estimulante, uma verdadeira ode ao sentimento de celebração da vida.

O Cristianismo, com seus dogmas, é apontado como inimigo da arte, representando um dos últimos estágios de degenerescência da cultura grega e dos impulsos vitais. O mundo é apresentado como obra de um Deus artista, alforriado de preconceitos morais.

Encharcado pelo pensamento reducionista, o indivíduo teórico afronta a existência pelo olhar da lógica e da ciência, encontrando uma ordem cósmica onde impera o caos. Renega tudo que se apresente incerto, irracional e misterioso, onde a força reativa reina absoluta sobre a força ativa, sendo incapaz de aceitar o sofrimento e as contradições da existência, campeando sempre uma consolação para seu infortúnio.

Nietzsche opõe-se a todas as ideias igualitárias, humanistas e pseudo-democráticas. Para ele as mesmas aprisionam. O seu ideal de indivíduo encontra-se nos príncipes do Renascimento: valentes, hábeis, amorais. Criaturas que se deixavam conduzir apenas por sua vontade de poder, ou seja, por sua energia vital. Nietzsche sentenciou que o Renascimento italiano acolheu em si as forças positivas a que devemos a cultura moderna: emancipação do pensamento, triunfo da educação sobre a arrogância da linhagem, desgrilhoamento do indivíduo.

Nessa direção, a arte e a música são justificadas como uma ilusão benéfica e necessária, uma ponte sobre o abismo da existência[2]:

O fato de o artista ter em maior apreço a aparência do que a realidade não se coloca contra essa proposição, pois em tal caso a aparência significa a realidade reproduzida uma vez mais, em forma de seleção, de acréscimo, de correção. O artista trágico não é um pessimista, ele diz sim a tudo que é problemático e terrível, é dionisíaco.

[1] Nietzsche, Friedrich. A Origem da Tragédia, tradução de Alvaro Ribeiro. Guimarães ed. Ltda: 5ª Ed. 1ª publicação: 1892.

[2] Nietzsche, Friedrich. O Crepúsculo dos ídolos: A filosofia a golpes de martelo. Tradução de Edson  Bini e Márcio Pugliesi. São Paulo, Hemus, 1976.

*Mariah de Olivieri
Filósofa, Mestre em Filosofia, Artista Plástica, Estudante na Casa da Filosofia Clínica.
Porto Alegre/RS

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