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Queijo ou mortadela ? Depoimento de um historiador sobre filosofia clínica no café da manhã*



            Subindo a Rua General Câmara, aos 40o no verão de Porto Alegre, não penso em mais nada a não ser uma Coca-Cola gelada, mas algo se destaca no meio do caminho. Olho a minha esquerda e vejo uma edificação antiga rabiscada pelos pichadores, é a Biblioteca Pública do Estado. Sei por que somente neste momento em particular este prédio me chamou a atenção, eu estava orientado a olhar o passado, não importa o que seja... estava com os olhos no ontem. Eu estava embriagado, por aquilo que a maiorias das pessoas esquecem.

            Não existe país, continente, povo ou pessoa sem sua história. A realidade que conhecemos está formada com base na sua história, conhecendo-a conhecemos a sua formação, suas dores, suas vitórias, suas derrotas; falo isso por um determinado ângulo de visão, pois o conceito de heróis e vilões são conceitos políticos e não nos compete discutir se queremos queijo ou mortadela, sim observar Clio, a antiga musa da história, escrever com sua pena.

            Com base na ideia de historicidade, podemos analisar a estrutura, tendências, culturas, fenômenos singulares e gerais. A partir da ideia também de totalidade, avaliamos de forma fenomenológica o desenvolvimento de fenômenos históricos, não tendo como preocupação a origem, mas desenvolvimento deste a partir da sua história. Cada canto do mundo há seu processo de desenvolvimento sociocultural e econômico, contudo para fazer uma avaliação mais profunda destes, não se deve pensar em uma linearidade, mas na sua singularidade. Seja povoado, vilarejo exibe sua história em particular, não podemos pensar que os indígenas “brasileiros” contém a mesma estrutura de pensamento, os mesmos moldes socioculturais que o Baiano, ou o Catarinense. Portanto, é impensável realizar um molde estrutural universal dos povos.

            Assim como na história, em seus estudos sobre os povos com suas particularidades, a Filosofia Clínica surge como alternativa para o autoconhecimento, em busca de rompimentos com determinadas estruturas criadas a partir de convenções padronizadas, as quais ignoram a singularidade. É impensável colocar no mesmo grau histórico o Brasil e os Estados Unidos, podem estar no mesmo período temporal, mas suas caminhadas são diferentes, ou seja, o modelo político colonial, a metrópole, os territórios, o clima, os nativos americanos, tudo isso influencia o seu desenvolvimento.

            A clínica tradicional padroniza sofrimentos a partir de códigos, chamados doenças e diagnósticos, para o tratamento. Um “Check List” é usado para criar o diagnóstico, ignorando a historicidade do indivíduo; ou seja, a vida da pessoa desde o nascimento até o canetaço do terapeuta é ignorado. De acordo com esta convenção um aborígene australiano poderá sofrer da mesma doença, em âmbito psicológico, que um estadunidense. “Porco Dio! Esse jacaré entalhado na árvore é o que?” – perguntam alguns espantados ao se depararem com um aborígene australiano conversando com tal árvore. Ignorar as crenças culturais, o território geográfico, prejudica o processo de avaliação. Além de tudo, convenções são criações políticas de ocidentais.

            Istvan Meszaros em uma de suas obras cita o “fardo do tempo histórico”, pensando de modo vulgar: carregamos em nosso íntimo todo um fardo de historicidade de nosso “mundo”, a religião territorial, os preconceitos, as ideologias, os medos! Sendo assim, somos escravos de nossa temporalidade. E a criação de um código para doenças mentais é uma ampliação de uma fronteira ideológica. Estamos praticamente em uma guerra... Queijo ou mortadela, meu amigo?

Diego Baroni
Historiador. Pós-Graduando na Casa da Filosofia Clínica
Porto Alegre/RS

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