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Apontamentos de Estética Helênica I*


Pela própria natureza do seu ideal, é a civilização helênica essencialmente a civilização artística. Fazer arte é querer tornar o mundo mais belo, porque a obra de arte, uma vez feita, constitui beleza objetiva, beleza acrescentada à que há no mundo. (...)

Há, porém, uma outra razão, esta mais emotiva e profunda, para que o ideal helênico seja, de todos, o que mais diretamente conduz à criação artística.

O cristão é metafisicamente feliz. Tem os olhos da alma postos naquela perfeição divina em que não há mudança nem cessação. Pesa-lhe pouco a vileza do mundo: viver e ver são para ele um mal-estar transitório. Ao índio nada dói o haver mundo; volta para o lado o rosto, e contempla em êxtase o Todo a que nem o nada falta. É metafisicamente feliz também.

Outra é a vida espiritual do homem de ideal helênico. Este vê que a vida é imperfeita, porque é imperfeita; porém não rejeita a vida, porque é na mesma vida que tem postos os olhos. Mesmo que veja no mundo dos deuses naquela beleza suprema, pela qual anseia, anseia também por essa beleza nos homens. (...) Por isso, dos três idealistas, é o heleno o único que não pode rejeitar aquela vida a que chama imperfeita. O seu ideal é, portanto, humanamente o mais trágico e profundo.

(...) Se é este, porém, o efeito do ideal puramente objetivo nas almas inferiores, nos espíritos superiores, que são os suscetíveis de criar, o efeito é outro. Não podendo buscar consolação espiritual na religião, força é que a busquem na vida. (...)

A arte é, com efeito, o aperfeiçoamento subjetivo da vida. (...)

Quando o ideal helênico assume o aspecto criador ou ativo, são três as formas de manifestação por que se revela.

Na primeira, e mais alta, dessas formas, o heleno, vendo que a vida é imperfeita, busca criar, ele, a perfeição, substituindo a arte à vida; e busca incluir em cada obra, para que a substituição seja perfeita, ou toda a vida ou um aspecto supremo da vida. (...)

Na segunda, e média, dessas formas, o heleno sentindo que a vida é imperfeita, busca aperfeiçoá-la em si próprio, vivendo-a com uma compreensão intensa, vivendo de dentro, com o espírito, a essência do transitório e do imperfeito. (...)

Na terceira, e ínfima, dessas formas, o heleno, vendo e sentindo vagamente a imperfeição das cousas, porém sem força espiritual, quer para construir uma perfeição que as substitua, quer para se consubstanciar emotivamente com a sua imperfeição, decide aceita-las como se fossem perfeitas, escolhendo em cada uma aquele momento, aquele gesto, aquela passagem que de tal modo encheu a nossa capacidade de sensação que naquele momento, naquele gesto, naquela passagem, a sentimos perfeita. (...)

*Fernando Pessoas

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