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Psiquiatria e identidade filosófica*


O conceito de identidade é coisa séria na filosofia. Tem consequências em várias áreas como a metafísica, a epistemologia, a relação mente-corpo, para falar das mais destacadas. Quando Aristóteles, no livro V da Metafísica, define identidade como uma unidade do ser, está se referindo a uma identidade, digamos, forte. Algo idêntico a si mesmo não pode ser de outra forma e nem outro ser pode ser idêntico a ele.

Mas, escreve ele, há identidade mais fraca, digamos assim. Coisas que são diversas em seu ser podem ser idênticas em propriedades ou aspectos. Qualidades, atributos e afecções podem ser idênticas em seres diferentes, assim como, por exemplo, todo ser humano é bípede mesmo sendo seres não idênticos de modo forte, pois cada indivíduo é um ser em si.

O mito da doença mental atua implicitamente no conceito de identidade. E quer atuar no modo forte desse conceito. Tenta nos fazer crer que atributos do ser têm identidade forte entre eles. A identidade forte, assumida como uma relação de si consigo mesmo, é ainda logicamente aceitável, porém tem suas controvérsias metafísicas e epistemológicas. Mas ainda assim a aceitamos de forma mais clara ou menos obscura. 

Usamos carteira de identidade para afirmar que somos quem somos e que ninguém pode ser outro por nós. Este exemplo ainda não é bom, pois a carteira de identidade representa quem somos, e o conceito de identidade não representa uma coisa com outra: é. O exemplo ainda não é bom, mas dá uma ideia de que assumimos a identidade forte de um ser consigo mesmo. Ter identidade é ser aquilo que somos sem uma cisão entre o ser e seus atributos ou qualidades ou afecções. A única cisão entre o ser e seus atributos é formal, mas nunca substancial.

A psiquiatria usa o conceito de identidade entre cérebro e comportamento. Quer fazer uma ligação forte de identidade entre esses dois e nos diz que nosso comportamento é algo em nosso cérebro (uma reação química, ou um estímulo ou uma ação neuronal). Mas afirmar identidade entre duas coisas diferentes é ainda mais problemático quanto assumir a identidade de si para consigo mesmo. 

Para afirmar o argumento a psiquiatria e os psiquiatras colocam força nos argumentos de força, tais como serem considerados médicos ou associarem-se a técnicas médicas científicas como neurodiagnóstico computacional. A força desses argumentos está baseada na força do saber-poder atrelados a eles – medicina e ciência – mas não explicam nem conseguem reforçar a identidade fraca como se fosse forte.

O fato de uma reação química se dar no cérebro quando certo comportamento acontece, seja mental ou físico, ou quando uma luz ilumina, no programa de computador, certa área do cérebro quando este é estimulada pela tristeza, por exemplo, não é automaticamente identidade entre cérebro e comportamento ou cérebro e sentimento. 

Pode ser que vinte pessoas em um laboratório, todas ligadas ao mesmo programa de computador e estimuladas com sentimentos de tristeza, tenham as mesmas reações químicas e iluminem o mesmo local no cérebro. Mas o que isso diz do conteúdo daquilo que sentiram? Como avaliar a intensidade, a extensão e o impacto que tal tristeza na vida de qualquer uma dessas pessoas ligadas ao computador? 

Essa identidade que querem estabelecer nesta experiência, por exemplo, é uma identidade fraca, de atributos, de afecções, de propriedades. E não seria necessário medicina ou ciência tecnológica para estabelecer qualquer tipo de identidade fraca. Podemos ficar com o exemplo no início desse texto: sem ligar-nos a fios e a computadores, podemos estabelecer que aqueles vinte indivíduos dentro daquele laboratório são bípedes, ou têm apenas dois olhos ou qualquer outra coisa. A ciência e a medicina servem apenas para dar peso ao argumento da força e não para dar força ao argumento.

Ao concedermos que a psiquiatria aliada à medicina e à ciência consegue estabelecer uma identidade forte entre cérebro e comportamento ou cérebro e sentimento estamos concedendo mais do que deveríamos e poderia ser concedido a uma pseudo-explicação que, tirando toda maquiagem e fantasia, não passa de uma explicação teórica análoga à da possessão demoníaca.

Não há identidade entre cérebro e comportamento ou entre cérebro e sentimento. Conceder que há reações químicas e estímulos no cérebro em consonância com comportamentos e sentimentos não é conceder que há identidade. Pode-se dizer que há uma relação causal entre elas, mas aí caímos em outro problema que é o determinismo. Não podemos aceitar também o reducionismo onde diz que porque reações químicas acontecem em nosso cérebro então somos meras reações químicas. Em uma guerra há em atividade leis da física, mas daí não podemos reduzir a guerra à física.

Considerar uma identidade falsa ou um determinismo é enfraquecer as relações complexas que acontecem entre os seres humanos e entre eles e seu meio. Além de não considerar a complexidade ainda maior que tudo isso toma na mente e nos sentimentos de cada um. Ainda, desde Sócrates, não foi achado atalho para o bem estar e a vida boa, e essas tentativas de diagnósticos identitários ou deterministas são tentativas de fabricar esses atalhos.

Mesmo que a reação química esteja presente e o computador identifique qual área do seu cérebro se ilumina com tal sentimento, ainda é a intersubjetividade que qualifica e dá sentido e significado àquilo que cada um sente e age.

Podemos aceitar a identidade forte de Aristóteles e dizer que somos uno com nós mesmos e então, a partir daí, estruturar nosso bem viver de acordo com aquilo que é necessário para manter e qualificar nosso eu que emerge de nosso ser. 

Mas precisamos estar atentos às teorias psiquiátricas que tentam definir nosso eu não de nosso ser, mas de uma falsa identidade entre atributos do nosso ser, mas que não definem sozinhos nosso eu nem se relacionam de forma determinista. Para nós, adultos, ainda nos resta um exame de autocrítica e autoconhecimento que pode nos proteger de pseudo-teorias-explicativas-com-argumento-da-força. 

Mas a coisa se torna mais séria quando adultos cuidam e tratam com crianças. A escola hoje é a instituição que mais clientes consegue para as clínicas psiquiátricas. As crianças hoje são medicadas e envenenadas muito em função da participação de adultos que trabalham com crianças em escolas. 

Faz-se urgente uma intervenção dialógica dentro das escolas, mais diálogo sobre essas supostas alternativas medicamentosas, e que os pais consigam conhecer melhor seus filhos e acreditar menos em fantasias explicativas deterministas e de pseudo-identidades.

Mas isso é outro assunto!

*Fernando Fontoura
Filósofo. Mestrando em Filosofia. Estudante na Casa da Filosofia Clínica
Porto Alegre/RS

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